Transamazônica: 50 anos de existência agrega briga por terra, pistolagem e incêndios

Trecho da Transamazônica próximo à cidade de Medicilândia, no Pará (Lalo de Almeida/Folhapress)

PARÁ – Sob um sol inclemente no começo da tarde da última sexta-feira, 23, crianças e adolescentes do assentamento Irmã Dorothy Stang caminham entre 3 e 5 quilômetros na estrada de terra para chegar à escola. Eles seguem sem sorrisos, sem brincadeiras, calados. Mal encaram os carros ou motos que transitam pelas vias estreitas.

A escola é bem simples. Tem um único cômodo, é sustentada por vigas de madeira e coberta por palhas de babaçu. Está equipada apenas com um quadro branco e 15 cadeiras.

O caminho feito pelos alunos é uma retomada – embora, naquela tarde, eles tenham voltado para casa sem aulas, por falta de professora.

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Há pouco mais de um mês, a Escola Paulo Anacleto foi incendiada, um crime denunciado pelos ocupantes das terras e atribuído por eles a grileiros e fazendeiros que tentam estender domínios e se apossar da área do assentamento.

A escalada dos conflitos, com ação de pistoleiros à luz do dia, espalhou pânico entre as 54 famílias, cujos lotes ocupados estão na altura do quilômetro 80 da BR-230 – a Transamazônica –, em Anapu (PA). Todas as pessoas com quem a Folha conversou, quando esteve no lugar, pediram para não ser identificadas.

A realidade do assentamento Irmã Dorothy Stang, onde todo mundo se sente ameaçado, evidencia os resultados da política de ocupação da Amazônia implementada pelos militares da ditadura.

O eixo central dessa política foi construir a Transamazônica, conectando Nordeste e Norte, e distribuir terras a pequenos agricultores e a fazendeiros que prometiam tornar os espaços “produtivos”.

Entre os fazendeiros e grileiros por trás dos ataques ao assentamento, em Anapu, estão herdeiros e compradores de terras destinadas no contexto do surgimento da Transamazônica, segundo moradores do Irmã Dorothy Stang que acompanham de perto os meandros do conflito e da disputa levada à Justiça.

Esse processo de ocupação disfuncional, com o agravamento dos conflitos por terra, na Amazônia, ao longo das décadas, já dura meio século. Foi institucionalizado a partir da inauguração do primeiro trecho da Transamazônica, em 27 de setembro de 1972 – exatos 50 anos atrás.

A inauguração foi feita pelo general Emílio Médici, então presidente da República. Ele se deslocou a Altamira (PA), que fica a 138 quilômetros de Anapu e a 830 quilômetros de Belém, e inaugurou um trecho de 1.253 quilômetros da Transamazônica, entre Estreito (MA) e Itaituba (PA). Surgia assim, a “imensa via de integração nacional”.

O próprio surgimento de Anapu se dá no contexto da inauguração da rodovia. As margens da BR foram loteadas, e estudos mostram uma diferenciação na distribuição de lotes. Lotes de cem hectares foram demarcados às margens da rodovia. Já glebas de 3.000 hectares foram delimitadas ao fundo de estradas, ramais e reservadas a fazendeiros com mais chances de “ocupação” e “produção”.

Ao longo das décadas, a política de ocupação se mostrou um instrumento de comercialização e grilagem das terras. Novos compradores ou ocupantes passaram a desmatar as áreas e ocupá-las com gado.

A destinação inadequada de terras da União levou grupos de sem-terra a reivindicarem a formação de assentamentos, a partir da década de 90. Conflitos e pistolagem passaram a ser uma constante.

O Lote 96 – como era mais conhecido o assentamento Irmã Dorothy Stang – começou a existir em 2011, quando chegaram os primeiros moradores ao lugar. Noventa e seis é o número do lote da gleba Bacajá, objeto da disputa protagonizada por fazendeiros e grileiros.

Segundo as famílias, a ofensiva pela retomada do lugar parte de herdeiros de Antônio Peixoto, que morreu em 2022, e de pessoas e compradores ligados a esses herdeiros. Peixoto não foi o primeiro a receber as terras vizinhas; ele teria adquirido a área de um primeiro proprietário. A Folha não conseguiu contato com os familiares de Peixoto ou com advogados desses familiares.

Desde o surgimento da ocupação da área, passaram a ser comuns as ações de intimidação por pistoleiros e o ateamento de fogo em casas dos moradores. Em maio, duas casas vistas de uma das sedes da fazenda foram queimadas.

Homens armados em dois carros estacionaram na frente da casa – que tinha estrutura semelhante a da escola – e anunciaram o que ocorreria. Deram 30 minutos para o casal e as duas crianças retirarem seus pertences. Atearam fogo na sequência. Os moradores decidiram não voltar ao assentamento, em razão do trauma das crianças. Os resquícios do incêndio continuam no local.

A segunda casa queimada naquele mês teve uma dinâmica diferente. O morador não teve tempo de retirar seus objetos. Saiu com a roupa do corpo. Perto da área queimada, um viveiro é cuidado todos os dias, com mudas de cacau e açaí. Uma nova casa foi construída, mas quem permaneceu na área não sabe se o morador retornará de vez ao lugar.

Em agosto, os ataques foram dirigidos à escola, com capacidade de abrigar 15 alunos do primeiro ao quinto ano do ensino fundamental – alguns alunos já estão no sétimo ano, mas, sem transporte para outras unidades, continuam frequentando a Escola Paulo Anacleto.

Os moradores do assentamento acreditam que a escola foi incendiada como forma de desmobilização das famílias, empurradas a buscar salas de aula em outros lugares. E isso ocorreu com algumas crianças, levadas pelos pais a vilas e povoados onde têm dupla moradia.

Cadeiras queimadas permanecem no pátio da escola. O teto foi recomposto, novas cadeiras foram dispostas e as aulas foram retomadas.

Um integrante da comunidade relata que dezenas de barracos já foram queimados. Defende, porém, ser necessário resistir. Outro diz que, se uma pessoa for nomeada líder, pode cavar sua sepultura.

Menos de dois meses antes da queima da escola, o projeto de assentamento Irmã Dorothy Stang foi formalmente criado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). O ato atendeu a uma decisão da Justiça Federal no Pará para que houvesse andamento do processo, após ação do MPF (Ministério Público Federal).

Há um pedido dentro do Incra para revogação da criação do assentamento, o que não se materializou, segundo o órgão.

“O processo foi redirecionado à área técnica para adequação ao ato de criação de novos assentamentos”, disse em nota. Após esse procedimento, terá início um processo de seleção de famílias, até homologação dos beneficiários, afirmou o Incra.

“Atualmente, as pessoas que estão na área são consideradas ocupantes irregulares. Somente podem ser classificados como assentados as famílias que passem pelos critérios de edital de seleção”, disse o órgão, que afirmou não ter competência sobre a segurança da área e das famílias.

Segundo um integrante do assentamento, “são vários os fazendeiros que estão pressionando pela revogação da portaria do Incra”.

O nome Irmã Dorothy Stang foi escolhido para o assentamento; a outra opção era Resistência do Xingu.

Dorothy tinha 73 anos, era agente da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e foi morta numa emboscada com seis tiros, quando se dirigia a uma reunião de agricultores em Anapu, em 2005. Ela atuava em prol de agricultores ocupantes de terras na região.

Os relatórios da CPT sobre violência no campo mostram uma predominância de conflitos, agressões, ameaças e mortes de indígenas, ribeirinhos, assentados e sem-terra que estão em áreas nas cidades do Pará por onde passam as frentes mais recentes de asfaltamento da Transamazônica.

Em 5 de 10 cidades ao longo de 850 quilômetros com pavimentação recente, a CPT registrou 36 conflitos por terra, em 2021, conforme o relatório mais novo divulgado pela entidade. As recordistas são Anapu, com 12 conflitos, e Altamira, com 15. Os próprios estudos para licença ambiental das obras já previam mais grilagem com a chegada do asfalto.

Em Anapu, houve registro de conflitos tanto no então Lote 96 quanto em outros projetos formalizados pelo Incra. A região tem oito projetos de assentamento e projetos de desenvolvimento sustentável, conforme o banco de dados do Incra.

Os integrantes do assentamento Irmã Dorothy Stang começaram a colocar câmeras de vigilância em locais estratégicos como forma de tentar inibir a ação de pistoleiros. Uma placa com o nome do assentamento também está sendo preparada. É a única condição para alguns deles decidirem se permanecem ou não no lugar à margem da Transamazônica.

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