Universidades desenvolvem políticas para reduzir barreiras às mulheres na academia

Entre os estudantes de graduação de todas as áreas, as mulheres são 57%, mas entre os que recebem a bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq. (Reprodução/Museu do Amanhã)
Com informações do Estadão

SÃO PAULO – Universidades e outras instituições do País têm criado políticas para tentar compensar o chamado efeito tesoura na vida acadêmica das mulheres e, especialmente, das que são mães. Estudos mostram que elas são muitas – e até mais que a metade, em algumas áreas na graduação –, mas, diminuem, drasticamente, em cargos altos da carreira. Entre os empecilhos estão a maternidade, o assédio e a discriminação explícita e implícita de gênero na academia.

“A gente já começa sendo desacreditada desde que entra na faculdade”, diz a bióloga especializada em herpetologia (estudo de répteis e anfíbios) Daniella França, de 34 anos. A formação exige muitas atividades em campo, como fazer armadilhas, carregar peso no meio do mato e pegar cobras. Ela conta que foi preterida por professores que acreditavam que ela não seria capaz por ser mulher. “E, quando você consegue, te chamam de mulher macho”.

Daniella afirma ainda que já sofreu assédio sexual de um colega em um acampamento de trabalho, além das inúmeras brincadeiras de mau gosto sobre cobras. Mãe de dois filhos e pós-doutoranda no Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), diz que “o que atrapalha não é a maternidade e, sim, a falta de apoio”. Ela já levou seu, então, bebê de 7 meses para uma expedição, em Alagoas, em busca de uma jararaca rara. Mas perdeu trabalhos em outros estados e a chance de fazer parte do doutorado fora do País pela impossibilidade de deixar as crianças e a falta de ajuda financeira para levá-las.

PUBLICIDADE
ctv-zcv-1-mulheres-na-academia
Daniella França, mãe de dois filhos e pós-doutoranda no Museu de Zoologia da USP, já foi preterida por ser mulher Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADAO

Entre os estudantes de graduação de todas as áreas, as mulheres são 57%, mas entre os que recebem a bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq, uma das mais disputadas do País, o índice cai para 36%. É o efeito tesoura, mostrado em tese de doutorado da pesquisadora Roberta Areas, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2020. 

O trabalho ainda indica que só 28% dos integrantes dos comitês das agências de fomento, que decidem quais pesquisadores vão receber as verbas públicas, são mulheres. E que, em cargos no topo da carreira, elas, praticamente, somem – nunca houve uma presidente da Associação Brasileira de Ciência (ABC) ou uma ministra da Ciência e Tecnologia, no Brasil, por exemplo.

A orientadora da pesquisa é a física e diretora da ABC Marcia Barbosa, que diz que, além do assédio e de estereótipos de gênero, as mulheres são afastadas da academia pelo viés implícito. São influências sutis que podem passar despercebidas, mas moldam o comportamento. “O fato de um homem ficar surpreso quando você faz bem uma atividade de exatas, por exemplo, é algo que te tira do seu lugar e diz que aquilo não é para você”.

Outra pesquisa feita por cientistas brasileiras, em 2019, mostra a queda de produtividade de mulheres que tiveram filhos. Os resultados de análises de milhares de currículos mostram que essa redução dura, ao menos, quatro anos depois do nascimento da criança e afeta mulheres de todas as áreas. Os gráficos indicam queda abrupta no primeiro ano da maternidade. A recuperação só vem perto do sexto ano, mas longe, ainda, do pico de produtividade que havia antes. Estudos realizados durante a pandemia também revelam prejuízos na produção das mulheres com filhos de até 12 anos. 

Boa parte desses dados foram estudados e divulgados pelo movimento ‘Parent in Science’, um grupo brasileiro de acadêmicas que levantou a discussão sobre a maternidade no meio científico. “O impacto na produtividade não se limita aos 6 meses de licença maternidade, tem todo o cuidado da criança pequena que acaba sendo mais da mãe”, diz a professora de Biotecnologia da UFRGS e mãe de três filhos, Fernanda Staniscuaski, uma das fundadoras do grupo. O ‘Parent in Science’ luta por mudanças nesse cenário e ganhou, semana passada, o prêmio ‘Inspiring Women’, da revista ‘Science’, uma das mais prestigiadas do mundo. 

Instituições como a UFRGS, a Federal de Pelotas (UFPel), Fluminense (UFF), de Pernambuco (UFPE), do Mato Grosso do Sul (UFMS) e Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) criaram, recentemente, maneiras de compensar os anos dedicados à maternidade. Já são 13 universidades e fundações de fomento à pesquisa, no País, com políticas nesse sentido. 

As ações acontecem, basicamente, de duas maneiras: são concedidos pontos a mais, em processos seletivos, (editais de concursos, mestrados, doutorados, bolsas) para mulheres que tiveram filhos nos últimos anos ou amplia-se o tempo que a produtividade da cientista-mãe passa a ser considerada numa concorrência. Por exemplo, se para uma vaga específica o normal é analisar artigos dos últimos 5 anos, passam a valer 7 anos.

O CNPq também começou a permitir, em abril, que as mulheres possam mencionar a licença maternidade em seus currículos, na plataforma Lattes, a mais respeitada do País. Na USP, as mudanças ainda são tímidas, mas a diversidade é, pela primeira vez, um tema importante na eleição para reitor que ocorre este mês. A instituição oferece complementação da licença maternidade, chegando a 6 meses, e fez programas compensatórios para mães durante a pandemia. “Estou na USP, desde 1999, e é a primeira vez que consigo ser ouvida sem gritar. Me explico e as pessoas me escutam”, diz a professora do Instituto de Geociências e coordenadora do escritório USP Mulher, Adriana Alves.

Ela é preta, veio de Diadema, e conta que sentia “solidão e não pertencimento” durante a graduação. “Eu não me via seguindo essa carreira, pensava: só tem branco e só tem homem”. Até que a única colega negra a levou para a iniciação científica, depois mestrado e doutorado. Atualmente, somente 3% das doutoras do País são negras. Adriana tem duas filhas, de 3 e 5 anos, e também viu sua produção cair durante a maternidade. 

ctv-c6y-2-mulheres-na-academia
Coordenadora do escritório USP Mulher, Adriana Alves, sentiu “solidão e não pertencimento” durante a graduação (TIAGO QUEIROZ/ESTADAO)

Há décadas, 70% dos professores titulares da USP, posição que permite galgar cargos de gestão, são homens. Ao concorrer a titular, a produtividade do docente é avaliada e não são considerados os anos dedicados à maternidade. “A gente não pode continuar passando a régua na mesma altura. Vamos perder cabeças brilhantes com isso”, diz Adriana.

“Sabemos que, ao ter filho, a mulher fica distante, deixa de publicar, e não é justo que isso atrapalhe seu processo seletivo”, afirma a diretora de Ciência do Instituto Serrapilheira, Cristina Caldas, a única instituição privada do Brasil de apoio à ciência e que criou as primeiras políticas de incentivo à diversidade. 

“As mulheres cumprem o papel social de cuidar dos filhos e ele não pode ser invisível nos critérios de seleção de carreira”. O instituto tem ainda um guia de boas práticas em diversidade, que deixa claro que inclusão não é só colocar as pessoas nos espaços e, sim, acolher. O manual explica que é preciso flexibilizar horários de trabalho e reuniões para mães e pais ou que é inapropriado perguntar durante a seleção se a mulher pretende ter filhos.

Bebê no xerox

O Observatório Cajuína, um coletivo de psicólogas, ajuda a viabilizar o cuidado de bebês e crianças em congressos e palestras, outra grande reivindicação das mulheres, já que a participação das profissionais conta pontos na vida acadêmica. São coisas simples como os palestrantes estarem avisados que há uma criança no local, para não reclamarem do barulho, salas para amamentação, micro-ondas e até espaço kids com brinquedos. “Se um lugar exclui a criança, ele exclui a mãe”, diz a psicóloga, especialista em maternidade, Luana Flor, uma das fundadoras do Cajuína. 

Ela mesma tem uma história de exclusão: seu primeiro filho nasceu durante a faculdade na USP. Por falta de ajuda, o bebê acabava ficando com a moça do xerox enquanto ela assistia as aulas. “Na festa de formatura eu chorava sem parar. Ninguém precisa passar por isso, não é algo para me orgulhar”.

Consciência

A compreensão da diversidade, em todos os espaços, é, atualmente, considerada fundamental, tanto por justiça quanto pelos melhores resultados. No mundo corporativo, a discussão já está avançada, com programas de trainees só para negros, promoção de mais mulheres, flexibilidade de horários para as mães. As pesquisas mostram melhor desempenho e lucro em equipes diversas, além da valorização da imagem da companhia. 

Na academia, considerada um ambiente mais conservador, as mudanças são recentes, mesmo fora do País. A professora titular do Instituto Biomédico da UFF, Letícia de Oliveira, tem sido cada vez mais procurada para palestras e consultorias em instituições, sobre o assunto, o que era impensável há poucos anos. 

Ela cita como exemplo a pesquisa de 2014, liderada por mulheres, que descobriu que pássaros-fêmeas também podiam cantar, diferentemente do que se acreditava. “Com pessoas de diversas raças, etnias, gênero, a chance de você fazer perguntas diferentes e encontrar respostas diferentes é muito maior”, diz. Ela ajudou a implementar na UFF o primeiro edital público do País para iniciação científica, em 2019, com pontuação maior para mães. O resultado: 60% das que foram aprovadas não conseguiriam sem o bônus. 

“As pessoas estão começando a se sensibilizar de que o problema de viés de gênero existe na docência, abriu-se uma caixa que não se fecha mais”, acredita Adriana. Mas há preocupação com retrocessos, já que o governo de Jair Bolsonaro tem tirado verbas e apoio da ciência. Apesar do momento difícil, Marcia diz que a discussão de gênero não pode ser secundária. “Não vou brigar por mais dinheiro, se ele não for igualmente distribuído, tem que estar junto na discussão, não pode ser só para os homens brancos de escolas de elite”, afirma. “Eu tenho uma ciência melhor se eu tenho uma ciência mais diversa”.

Para entender melhor

Guia

O guia de boas práticas em diversidade na ciência, do Instituto Serrapilheira, diz que a “inclusão vai além de contratar pessoas de grupos subrrepresentados: requer acolhimento, disponibilidade, escuta e diálogo”.

Sugestões

Entre as práticas sugeridas para ter equipes diversas está não fazer perguntas “discriminatórias como sobre o desejo de ter filhos”.

Seleção

Evitar uma única pessoa ser a selecionadora. Para “neutralizar vieses implícitos, é preferível formar um comitê de seleção com perfil étnico, de gênero e socioeconômico diverso”.

Processo

Após a contratação, flexibilizar horário de trabalho e reuniões, considerando pais e mães de crianças pequenas.

Atenção

Em eventos e viagens, garantir apoio a bebês e crianças e dar recursos adicionais durante a amamentação para acompanhantes.

PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.