‘A gente não podia ser humilhado desse jeito’, diz indígena sobre reintegração de posse
18 de dezembro de 2023
Reintegração de posse (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium Amazônia)
Marcela Leiros – Da Revista Cenarium Amazônia
MANAUS (AM) – “A gente não podia ser humilhado desse jeito, porque nós somos dessa terra. A gente merece uma terra digna”. Emocionada, Margarida Ferreira, indígena Kokama, relembra o momento em que se ajoelhou perante equipes da tropa de choque, durante ação de reintegração de posse realizada no bairro Tarumã, Zona Oeste de Manaus. Após decisão judicial, aproximadamente 200 famílias foram retiradas do local nesta segunda-feira, 18.
A ação policial retirou indígenas e não indígenas de uma área conhecida como “Comunidade Indígena Nusoken“, após determinação da juíza federal Jaiza Fraxe, da 1ª Vara Federal Cível. Famílias de 21 etnias moravam no local há cerca de oito meses. A área é reivindicada pelo Hospital Santa Júlia.
À reportagem, o presidente da FEI, Sinésio Trovão, confirmou que apesar de ter ciência de que a ocupação da área é irregular, é necessário dar condições dignas para os indígenas. Trovão acrescentou que o órgão não tinha conhecimento da ação policial e criticou a violência empregada na reintegração. Vídeos divulgados nas redes mostram truculência com idosos e mulheres durante o cumprimento da decisão.
“Nós não tivemos conhecimento oficial, e isso nós queríamos saber para que nós, povos indígenas, por meio da fundação, acompanhássemos a situação para a não agressão a essas pessoas. É triste quando nosso pessoal é agredido, os idosos, às vezes, as crianças. É essa situação que a gente não aceita acontecer“, afirmou, confirmando que levará a situação dos indígenas a uma reunião com o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), do governo federal, na próxima quarta-feira, 20.
Funai
O coordenador regional da Funai no Amazonas, Emilson Munduruku, informou que não houve notificação em tempo hábil para o órgão tomar as medidas necessárias junto às lideranças. Após a reintegração de posse, as famílias ficarão abrigadas na sede da Funai, na Avenida Maceió, bairro Nossa Senhora das Graças, Zona Centro-Sul. Ainda não há um plano de reacomodação dos indígenas. “Não sabemos ainda, eles, infelizmente, estão sem lugar para ir“, declarou.
A ação foi coordenada pela Justiça Federal, com apoio do Gabinete de Gestão Integrada (GGI) da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM), em conjunto com a Polícia Militar do Amazonas (PMAM), agentes da Polícia Federal (PF) e Corpo de Bombeiros Militar do Amazonas (CBMAM), representantes da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas), do Grupo Integrado de Prevenção às Áreas Públicas (Gipiap), da Secretaria de Estado de Administração e Gestão (Sead), além de agentes do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e da concessionária Amazonas Energia.
Decisão judicial
A decisão judicial que autorizou a ação de reintegração de posse foi assinada no último dia 11 de dezembro. Nela, a juíza Jaiza Fraxe elenca que os autores da invasão já haviam sido retirados uma vez, por determinação da Justiça Estadual, mas retornaram usando de violência para ocuparem o terreno, mantendo o caseiro do local em cárcere privado e ameaçando-o para que saísse do imóvel imediatamente.
A defesa dos ocupantes interpôs recursos contra a decisão afirmando que a área se tratava de comunidade indígena, razão pela qual o processo deveria ser remetido à Justiça Federal. Porém, após recebimento e inspeção judicial no local, não foi constatado se tratar de terra indígena ou ocupação “que envolvesse ancestralidade, tradição e cultura de povos indígenas“. O processo foi, então, remetido à Justiça Estadual novamente.
O Hospital Santa Júlia, que reivindica a propriedade do imóvel, requereu a reintegração de posse indicando danos irreparáveis ou de difícil reparação para aguardar a sentença final, como impactos ambientais. “[…] correrá o risco de ter o terreno totalmente degradado e desmatado, pelo fato de que os invasores estão, de forma criminosa, destruindo toda a vegetação nativa não antropizada, necessitando medidas urgentes do judiciário para evitar este dano ambiental irreparável, e ainda, que os líderes da invasão criminosa estão agindo de má-fé, com o intuito de comercializar lotes, ludibriando terceiros de boa-fé […]“, declarou.
De volta à Justiça Federal, a juíza elencou que o Hospital Santa Júlia comprovou: a posse e propriedade do terreno; a empresa comprovou o esbulho — ato de usurpação — praticado pelos ocupantes, com danos a benfeitorias e à vegetação; data do início da nova invasão, no dia 18 de julho deste ano; a perda de posse legítima; a invasão não ter qualquer relação com movimento indígena, sendo usada por “pessoas que, claramente, querem usar o movimento indígena como escudo para invadir terras particulares“.
Quanto ao cumprimento da decisão, a juíza determinou que a ordem de reintegração deveria ser cumprida pacificamente, evitando medidas coercitivas até que ocorressem casos de resistência. Após a retomada da posse, o Hospital Santa Júlia ainda deverá manter a segurança privada do local para evitar novas invasões.
Esta não é a primeira reintegração de posse envolvendo indígenas no Tarumã, primeiro bairro indígena da capital amazonense, na Zona Oeste. No local onde, hoje, fica localizado o Parque das Tribos, duas ações foram realizadas. Uma decisão foi assinada em 2014 e a segunda em 2015. Atualmente, o processo encontra-se sub judice, ou seja, sem uma decisão final da Justiça. Mais de 300 famílias, de 35 etnias, vivem no local.
Relembre a reintegração de posse ocorrida no Parque das Tribos:
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