‘A Rainha Diaba’ leva Carnaval a Berlim e levanta debate LGBTQIAP+ em festival

'Bem-vindos ao baile de Carnaval brasileiro.' Assim começou a sessão de 'A Rainha Diaba' no Festival de Berlim, apresentada pelo diretor Antonio Carlos Fontoura (Divulgação)
Da Revista Cenarium*

BERLIM (DE) – “Bem-vindos ao baile de Carnaval brasileiro.” Assim começou a sessão de “A Rainha Diaba” no Festival de Berlim, apresentada pelo diretor Antonio Carlos Fontoura. O longa de 1974, que integra a seção Forum Especial, foi exibido em versão restaurada para uma sala lotada na capital alemã.

“A Rainha Diaba”, cujo argumento original é de Plínio Marcos, acompanha a personagem título, uma figura afeminada interpretada por Milton Gonçalves, que controla o tráfico de drogas de dentro de um prostíbulo de periferia e decide fazer de bode expiatório um jovem gigolô para evitar a prisão de um membro de sua gangue. A trama é simples, mas o longa aposta numa estética do excesso que confere a ele seu vigor ainda hoje, 50 anos depois da filmagem.

“É um filme que foi pensado para ser assim, estranho, ‘fora da caixinha’, como se costuma dizer”, esclareceu Fontoura depois da sessão. Tanto pela direção de arte, conduzida por Angelo de Aquino, que abusou do figurino colorido e cenários kitsch, quanto pela trilha sonora experimental de Guilherme Vaz, que criou uma atmosfera complexa e potente para a trama de cabaré.

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Milton Gonçalves em cena do filme ‘A Rainha Diaba’, de Antonio Carlos Fontoura, lançado em 1974 (Divulgação)

O diretor conta que, por sugestão de Hélio Oiticica, passou algumas semanas em Nova York com um grupo de LGBTQIAP+ porto-riquenhos. O convívio rendeu inspiração que aparece nos trajes e trejeitos das personagens trans do filme, interpretadas tanto por atores profissionais como por não atores, integrantes da comunidade marginal brasileira da época.

Segundo filme do diretor de “Copacabana me Engana”, de 1968, “A Rainha Diaba” teve mais de 800 mil ingressos vendidos, à época, e foi exibido no Festival de Brasília e na Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes. E, agora, está disponível ao público graças a um esforço conjunto do Cine Limite e da Janela Internacional do Cinema do Recife, que viabilizaram a restauração em 4K a partir dos materiais originais provenientes do Arquivo Nacional e do Centro Técnico Audiovisual Brasileiro, o CTAV.

Uma parceria privada de restauro da memória do cinema nacional, similar à que vimos com “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, capitaneada pelo Metrópolis e exibido no Festival de Cannes no ano passado.

Para além das qualidades técnicas impecáveis da exibição, que possibilitaram que as cores e sons de “Rainha Diaba” enchessem a tela do Zoo Palast na capital alemã, impressiona a vitalidade do filme e, especialmente, a qualidade das atuações.

É inevitável erguer a taça a Milton Gonçalves, morto em maio do ano passado, aos 88 anos, que interpreta a protagonista. Está enganada a Wikipédia e quem mais pensar que o filme se inspira em Madame Satã. É uma figura icônica do porto de Santos, no litoral paulista, que controlava o narcotráfico na região e era igualmente temida e venerada – o que Gonçalves consegue traduzir em cena com maestria, esbanjando talento e versatilidade no papel de uma trans violenta e cativante.

Ao seu lado figuras de talento maciço, como Nelson Xavier, companheiro de Gonçalves no Teatro de Arena, Odete Lara, com cacoetes da época, mas não menos potente, e um jovem Stepan Nercessian que se consolida como um charmoso galã da época.

‘A Rainha Diaba’ teve mais de 800 mil ingressos vendidos, à época, e foi exibido no Festival de Brasília e na Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes (Divulgação)

O clima festivo da sessão em Berlim esfriou um pouco quando o assunto foi a cena em que a personagem de Odete Lara – ex-mulher do diretor e grande diva da época – é torturada por um grupo de trans do bando da Rainha Diaba. Desconfortável, inclusive, pela sua duração, a cena salta aos olhos para um espectador de 2023, o que, certamente, passou despercebido à época.

“Eu adoro essa cena”, declarou Fontoura, antes de confessar que não houve ensaio prévio e elogiar Odete Lara por ter sido “muito legal” de embarcar na viagem sádica proposta no dia da filmagem por Milton Gonçalves.

“Rainha Diaba” é um filme que naturaliza a violência e que usa elementos trans, com homens afeminados usando maquiagem, para compor sua estética do exagero, algo que pode causar desconforto no contexto atual de conscientização sobre o tema.

Especialmente num dia que também viu a exibição de “Orlando”, de Paul Preciado, um misto de documentário e ficção que revisita a obra homônima de Virginia Woolf sob a perspectiva de algumas pessoas trans reais. “Como se faz uma autobiografia trans?”, pergunta Preciado no início do filme, respondendo à pergunta, com louvor, com a realização do longa.

A constatação poderia levar a uma pergunta. Por que restaurar “Rainha Diaba”?. Matheus Pestana, da Cine Limite, responde com outra pergunta. “E por que não?”. Ele conta que estão, atualmente, trabalhando no restauro das obras de Helena Solberg, uma cineasta invisibilizada na história do cinema brasileiro pela inexistência de acesso à sua obra.

Kleber Mendonça Filho, do Janela, ecoa a admiração de Pestana pelo filme. “É um filme brasileiro de 50 anos com registro mais próximo de um ‘movie’ do que do realismo da época.” Ambos ressaltam que a exibição do filme na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo teve ótima repercussão entre o público jovem.

“Rainha Diaba” foi rodado na época da ditadura e representou o Brasil internacionalmente. Deveria ser apagado por sua ausência de consciência política?. São perguntas que ficam, felizmente, junto da belíssima cópia restaurada do filme.

(*) Com informações da Folhapress
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