Acadêmicos do Salgueiro vai focar na essência do povo Yanomami e não na crise humanitária

Imagem ilustrativa do enredo 2024 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Salgueiro (Divulgação/Salgueiro)
Da Revista Cenarium*

RIO DE JANEIRO (RJ) – Carnaval. Há um ano, uma série de ações governamentais foi anunciada para fazer frente a uma tragédia humanitária que se arrastava há alguns anos na Terra Indígena Yanomami (TIY), no extremo norte do Brasil. A crise, relacionada com o avanço do garimpo ilegal na região, se traduzia em fome, contaminação e alarmante aumento de diferentes doenças, sobretudo, a malária. Segundo dados do Ministério dos Povos Indígenas, apenas em 2022 morreram 99 crianças da etnia, com menos de cinco anos, na maioria dos casos por desnutrição, pneumonia e diarreia.

A repercussão da tragédia gerou comoção nacional e sensibilizou lideranças do Salgueiro. A escola de samba do Rio de Janeiro levará para o desfile do Carnaval deste ano o enredo Hutukara. Será a terceira agremiação a atravessar a Marquês de Sapucaí no domingo, 11 de fevereiro. Mas Igor Ricardo, enredista do Salgueiro, adverte: o foco não será a crise humanitária.

 Rios contaminados têm coloração e margem afetadas pela atuação de garimpo ilegal na região do Surucucu, dentro da Terra Indígena Yanomami, Oeste de Roraima, avistados em sobrevoo da Força Aéra Brasileira para lançamendo de suprimentos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Rios contaminados têm coloração e margem afetadas pela atuação de garimpo ilegal na região do Surucucu, dentro da Terra Indígena Yanomami (TIY), oeste de Roraima (Fernando Frazão/Agência Brasil)

“Nós até vamos abordar a tragédia em um momento específico do desfile, mas o desfile não é sobre a tragédia. O desfile é sobre a essência do povo Yanomami. Quem é, verdadeiramente, o povo Yanomani? Na televisão, os Yanomami só aparecem quando veiculam notícias sobre a malária ou sobre os impactos do garimpo nas suas terras. Aquilo não é o indígena. É o resultado que a ação de garimpeiros e forasteiros gera nos indígenas. Mas o que esse povo faz? Do que se alimenta? Como trabalham?”.

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A Terra Yanomami (TY) ocupa mais de 9 milhões de hectares e se estende pelos Estados de Roraima e do Amazonas. É a maior reserva indígena do País. Os resultados do Censo 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que mais de 27 mil indígenas vivem nessa área.

Surucucu (RR), 09/02/2023 - Mulheres e crianças yanomami em Surucucu, na Terra Indígena Yanomami.  Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Mulheres e crianças Yanomami em Surucucu, na Terra Indígena Yanomami (TIY) (Fernando Frazão/Agência Brasil)

A principal referência para o desenvolvimento do enredo foi o livro A Queda do Céu, assinado pelo xamã Yanomani Davi Kopenawa e pelo antropólogo francês Bruce Albert. A obra foi lançada na França em 2010 e teve sua primeira edição traduzida para o português em 2015.

“O Yanomami é um povo desconhecido pra gente. Quem lê o livro vai descobrir um universo fantástico. Traduzir isso para o desfile é difícil, foi complexo. O Carnaval já tem muita tradição de falar sobre o povo negro, os povos de raiz africana. E com o tempo, fomos nos familiarizando. A gente tem maior conhecimento, por exemplo, sobre Oxum, sobre Ogum. Mas ainda somos muito carentes de conhecimento sobre os povos indígenas. Desenvolvendo esse enredo do Salgueiro, percebi, na verdade, que a gente não conhece quase nada da cultura indígena”, observa Igor.

O enredista afirma que, no Dia do “Índio”, celebrado anualmente em 19 de Abril, as escolas costumam organizar apresentações das crianças vestidas com cocares ou sainhas com penas. Segundo ele, essas representações ocorrem, muitas vezes, a partir de estereótipos. Também tem ocorrido nos últimos anos, sobretudo, nas redes sociais, discussões acaloradas em torno da tradição de se usar fantasias com adereços indígenas durante o Carnaval. Críticos veem desrespeito à cultura desses povos, enquanto outros consideram se tratar de uma homenagem.

Surucucu (RR), 09/02/2023 - Mulheres e crianças yanomami em Surucucu, na Terra Indígena Yanomami.  Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Mulheres e crianças Yanomami em Surucucu (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Para o enredista, umas das missões do Salgueiro é mostrar que há uma diversidade entre os indígenas, destacando as especificidades. Para isso, há um esforço em ser o mais fidedigno possível à representação Yanomami. O próprio Davi Kopenawa esteve no barracão para dar o seu parecer sobre as fantasias.

“A gente está tentando ao máximo respeitar os Yanomami como eles são. É a pintura corporal específica deles, é o cocar deles, são os adereços que eles usam no braço. O Salgueiro está se preocupando muito com relação a isso. A gente está muito seguro porque a gente buscou o tempo inteiro se guiar pelo olhar do próprio Yanomami. Esculturas que estarão no carro do Salgueiro foram referenciadas em imagens feitas na própria aldeia”, conta Igor.

O desfile também irá apresentar a mitologia Yanomami, as práticas culturais, as atividades cotidianas. “O Davi Kopenawa fala que para você respeitar um povo, é preciso conhecê-lo verdadeiramente. Então, é um convite ao mundo para conhecer, verdadeiramente, o povo Yanomami, que tanto tem sofrido pela ação do homem branco”.

O xamã Yanomani Davi Kopenawa e o enredista da Acadêmicos do Salgueiro, Igor Pereira (Divulgação/Salgueiro)

No final do desfile, esse convite será estendido para que o público procure conhecer também as populações de outras etnias. “São povos que lutam para preservar a língua, lutam contra o desmatamento, contra o tráfico de drogas, contra o risco de despejo. Mas a gente busca mostrar esses povos pelas particularidades de cada um deles. Não pela tragédia, mas pela beleza única e exclusiva que eles têm”.

Igor dá um exemplo. “Os Xoklengs têm aparecido muito na mídia por conta do seu protagonismo na resistência contra a tese do Marco Temporal. Mas as notícias não destacam quem são os Xoklengs? Então, por exemplo, eles têm a tradição de fazer um manto de urtiga. Como eles estão em Santa Catarina, eles precisam, no inverno, de muita proteção contra o frio. E eles produzem um manto bem característico. E nós vamos representá-los no desfile com esse manto”.

Rio de Janeiro (RJ) 07/02/2024 - Carnaval 20224 - Carnavalesco Edson Pereira (e), enredista Igor Pereira (d) e xamã yanomani Davi Kopenawa (c)
Foto: Divulgação/Salgueiro
O carnavalesco Edson Pereira (à esquerda), o enredista Igor Pereira (à direita) e o xamã Yanomani Davi Kopenawa (ao centro) (Divulgação/Salgueiro)
Mundo Yanomami

A palavra Hutukara, título do enredo, é traduzido por Igor como terra-floresta. Ele alerta, porém, para a complexidade do significado do termo. Em 2013, durante uma conferência realizada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e documentada em uma publicação da instituição, Davi Kopenawa ofereceu um explicação mais aprofundada.

“Nós, povo Yanomami, conhecemos há muitos anos, mais de quinhentos anos, o que nosso pai colocou como Hutukara. Hutukara é uma terra, o branco chama de ‘mundo’, outros falam a palavra ‘universo’. É assim que o branco fala, branco fala que o mundo é redondo. Para nós, povo indígena aqui do Brasil, outros povos indígenas, cada um chama diferente: alguns chamam Hutukara, outros chamam Tupã, outros chamam diferente, mas é uma só. É uma Hutukara só. E nós estamos aqui sentados na barriga da nossa terra-mãe. A Hutukara fica junto com a pedra, terra, areia, rio, mar, sol, chuva e vento. Hutukara é um corpo, um corpo que é unido, ela não pode ficar separada”, disse o xamã.

Para retratar o mundo Yanomami de forma mais fidedigna, a linguagem tem sido uma aposta do Salgueiro. A sinopse do enredo faz uso de diversas palavras do idioma Yanomami, muitas das quais foram levadas também para o samba-enredo Ya temi xoa! Aê, êa! Ya temi xoa! Aê, êa!.

A música é assinada por oito compositores. “Tem gente que tem mais facilidade para mexer com melodia, outros mais facilidade para poesia. Mas todo mundo faz um pouquinho de cada coisa. Nossa parceria, graças a Deus, é bem servida tanto de poetas quanto de músicos”, explica Marcelo Motta.

Em sua visão, a composição soa como um manifesto. “Não podemos mais aceitar que seres humanos sejam vítimas de exploração em suas terras, ocasionando danos à sua vida e às suas famílias. A mensagem é um verdadeiro manifesto a favor dos povos originários e contra a ganância do homem branco, contra a mineração destrutiva, contra a exploração das terras que pertencem àquele povo”, diz.

De acordo com Marcelo Motta, o processo de produção do samba-enredo envolveu uma imersão no mundo Yanomani. “Cada um dos compositores foi se aprofundando mais individualmente também. Eu assisti documentários, entrevistas do Davi Kopenawa nas redes sociais. E depois fizemos reuniões onde cada um trazia suas ideias”.

O resultado agradou o enredista Igor. “O Yanomami não fala português na aldeia. O Yanomami tem a própria língua. E o samba-enredo foi muito feliz em trazer expressões Yanomami que pouquíssimas pessoas conhecem. E pela visibilidade que o Carnaval possui vai gerar interesse nessa língua”, avalia.

Desfile

Igor destaca que esse trabalho de pesquisa foi encampado com entusiasmo por todos os envolvidos na construção do desfile deste ano. Embora o livro A Queda do Céu tenha sido seu principal guia, outros conteúdos também se tornaram referência para a elaboração da sinopse do enredo.

Ele afirma já ter lido 15 obras e cinco artigos, além de ter assistido diversos vídeos. Igor precisa entregar ao corpo de jurados com a defesa do enredo e, por isso, continua lendo outros materiais para fundamentar seus argumentos.

“Hoje eu considero que consigo entender, que consigo dialogar com as pessoas sobre a cultura Yanomami. Foi um processo intenso de pesquisa e de estudo porque foi tudo muito novo. E nós vamos mostrar isso. Será um passeio pelo universo Yanomami, que tem uma mitologia riquíssima. O desfile começa mostrando o Omama, que é o deus da criação”, conta.

O Salgueiro também destacará a importância da pesca e da caça como práticas cotidianas, bem como o trabalho das mulheres na roça e na colheita de frutos e, principalmente, da pupunha, que é característica da Amazônia. “Vamos retratar a Festa da Pupunha. Mas é importante destacar que iremos mostrar o dia a dia de uma aldeia, a maior, de Terra Yanomami (TY). Porque são mais de 200 aldeias espalhadas por todo o território”, ressalta Igor Ricardo.

Manifestante em frente a imagem de jornalista britânico Dom Phillips e de indigenista Bruno Pereira em Brasília
O jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira que também serão homenageados pelo Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro (Ueslei Marcelino/Reprodução)

A chegada do garimpo e a cobiça pelos metais preciosos serão representadas em um setor específico. A forma como os Yanomami veem essa situação, a partir da sua mitologia, também será apresentada. “Se tem o deus da criação, que é o Omama, eles acreditam no deus da destruição, que é o Yoasi”, explica o enredista.

Fatos relevantes relacionados com a história e a cultura destes povos também serão apresentados ao público. Será feita referência a artistas plásticos Yanomami que estão expondo fora do Brasil, em diferentes países da Europa e também na China e nos Estados Unidos. Haverá também menção ao livro Ana Mopö: Cogumelos Yanomami, resultado de um trabalho de pesquisadores indígenas e não indígenas. A obra foi premiada em 2017 na 59ª edição do Prêmio Jabuti de Literatura, na categoria Gastronomia. “Isso deu muito orgulho a eles. Mas recebeu pouco destaque. Foi notícia? Foi. Mas não com tanta repercussão quanto a tragédia humanitária”, destaca Igor.

O desfile reservará, ainda, espaço para homenagear o indigenista Bruno Pereira e o repórter britânico Dom Phillips, mortos no ano de 2022 em uma emboscada no Vale do Javari, no Amazonas. “Como diz o Davi Kopenawa, não é que os brancos não possam conhecer verdadeiramente os indígenas. É que a gente realmente não conhece. Mas existem alguns brancos que entenderam quem são verdadeiramente os indígenas. E o Bruno e o Dom foram dois deles. Eles conheceram profundamente os povos Matis que vivem no Vale do Javari. E o Salgueiro está fazendo, agora, esse movimento: é uma escola de samba não indígena que está tentando entender quem são os indígenas”.

Leia mais: Leonardo DiCaprio exalta enredo do Salgueiro em homenagem aos Yanomami
(*) Com informações da Agência Brasil
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