Barreira histórica ainda separa seis milhões de negros de ascensão em ‘meritocracia’

Grupo de trabalhadores negros do Brasil (Marcelo Casal Jr/Agência Brasil)
Luciana Santos – Especial para Revista Cenarium**

MANAUS (AM) – Os últimos dados sobre a educação no País, divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), demonstraram que ainda estamos longe da igualdade de oportunidades entre negros e brancos. A pesquisa aponta que entre os jovens de 15 a 29 anos, em 2022, haviam 9,8 milhões de pessoas que não estavam em ocupação ou em estudo/qualificação; destas, 6,6 milhões eram negras.

Os motivos para a não frequência desse grupo a algum tipo de qualificação incluem: a falta de escola na localidade onde moram; a falta de vagas ou o turno desejado; a falta de dinheiro para pagar as despesas e a necessidade de realizar trabalhos domésticos ou cuidar de pessoas. É interessante também observar que o critério “falta de interesse” é menor entre os negros, o que demonstra que os argumentos de quem defende a meritocracia num País como o Brasil não condizem com a realidade. Muitos querem, mas as barreiras, às vezes, são intransponíveis.

Esses dados refletem um passado histórico, que é o que eu gostaria de compartilhar nesse texto. É preciso saber que o direito à educação foi durante um logo período uma estratégia de exclusão de um determinado grupo e de manutenção de privilégios para outro.

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Em nossa primeira Constituição, a de 1824, o artigo 6, inciso I, deixava claro que escravizados não eram cidadãos, portanto não tinham direito à educação formal. Em 1827 foi publicada a primeira lei nacional sobre educação pública, mas esta nada falava sobre a população negra.

Em 1854, o Decreto 1.331-A, conhecido como reforma Couto Ferraz, vedava que as escolas admitissem crianças escravizadas ou com moléstias contagiosas (percebam o nível de associação que é feita). Nesse cenário, é importante ressaltar que, apesar das proibições legislativas serem expressas para escravizados, acabavam por recair também sobre os libertos.

Diante de tantos entraves, a alternativa para a alfabetização de crianças e adultos negros acabava partindo de iniciativas da própria comunidade, contando com a colaboração de indivíduos que, de alguma maneira, conseguiram ser alfabetizados. Um exemplo dessas iniciativas foi a de uma escola localizada na Rua da Alfândega, no Rio de Janeiro, coordenada pelo professor Pretextato dos Passos e Silva, um homem negro alfabetizado, que recebeu o pedido para a abertura da escola de pais de crianças pretas e pardas, que não eram bem-vindas em outras instituições de ensino em função da cor de pele.

Após a assinatura da Lei Áurea, os entraves à educação da população negra permaneceram os mesmos. Nilma Lino Gomes, em “O movimento Negro Educador”, conta que o fato da população negra ter priorizado a luta por educação no pós-abolição ocorreu “pois o analfabetismo e a lenta inserção nas escolas oficiais se constituíam um dos principais problemas dessa população para a inserção no mundo do trabalho”. A educação passou, então, a ser vista pelo Movimento Negro como um instrumento de mobilidade social para os recém-libertos. Destaco o trabalho feito pela Imprensa Negra nesse sentido, como também da Frente Negra Brasileira, Teatro Experimental do Negro (fundado por Abdias do Nascimento) e do Movimento Negro Unificado.

Foram importantes, também, as articulações do Movimento Negro durante a Assembleia Nacional Constituinte, que contou com a presença de Benedita da Silva (PT-RJ), Carlos Alberto Caó (PDT-RJ), Edimilson Valentim (PT-RJ) e Paulo Paim (PT-RS), como nossos representantes. Na década de 90 e início dos anos 2000, as ações levam à conquista da Lei de Cotas para ingresso no ensino superior. Apesar disso, a permanência na universidade continuou a ser um desafio, assim como acontece no ensino fundamental e médio.

Como diz um dos lemas do Movimento Negro: “nossos passos vêm de longe”. Apesar das conquistas obtidas por meio de muita luta, infelizmente, a caminhada parece longe de um final positivo, como aponta a pesquisa que cito no início desse texto. Tornar esses fatos históricos cada vez mais conhecidos, por meio de um veículo de comunicação de massa, é um exercício de chamar atenção para os nossos desafios como sociedade. Precisamos de um projeto de Estado. A educação liberta, como ensinou Paulo Freire, e precisamos de aliados críticos nessa caminhada.

(*) Luciana Santos é jornalista e advogada, mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Público, Direitos Humanos e Processo Civil, Africanidades e Cultura Afro-brasileira e possui MBA em Marketing e MBA em Gestão empresarial.
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.
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