Barreira linguística dificulta acesso de indígenas a direitos fundamentais, aponta estudo

Na Aldeia Mata Verde Bonita, 20 famílias Guarani Mbyá se comunicam na língua materna, um idioma indígena do tronco tupi-guarani (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Da Revista Cenarium*

SÃO PAULO – Em um País profundamente desigual como o Brasil, uma das formas de exclusão social pouco discutidas é a linguística. Com aproximadamente 300 línguas faladas, além da língua portuguesa, indígenas e outras minorias linguísticas são excluídas de direitos fundamentais e do exercício da cidadania por dificuldades de acesso ao poder público. O assunto foi tema de uma tese de doutorado defendida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

A advogada Maria Teresa de Mendonça Casadei investigou problemas de comunicação e acesso a direitos da população indígena que não domina a língua portuguesa. A autora trabalhou em três linhas: identificar a existência de um novo ramo do direito que atendesse à acessibilidade linguística dos povos indígenas não falantes de português; construir uma teoria sobre esse novo direito, defini-lo na ordem jurídica brasileira; e apresentar possíveis soluções para que indígenas possam se comunicar e exercer seus direitos fundamentais.

Casadei constatou que o grau de acessibilidade linguística nos três poderes, na prática, é inexistente. No Poder Executivo, atualmente, não existe política pública sobre o tema. No Legislativo, não há lei ou ato normativo a respeito da acessibilidade. E no Judiciário, a legislação prevê acompanhamento de tradutores e intérpretes em processos criminais, mas o indígena não desfruta do direito de se comunicar e ter acesso aos processos em sua língua tradicional.

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“Infelizmente, constatamos que o Estado brasileiro, no âmbito de todos os poderes, não respeita as normas de caráter internacional e não confere ampla acessibilidade linguística aos indígenas”, afirma. A pesquisadora avalia que o grau de exclusão social, fruto dessa inacessibilidade linguística é máximo. A análise de casos judiciais verificou diversas violações de direitos fundamentais.

Impactos da desigualdade

Casadei cita indígenas enganados por bancos em empréstimos financeiros, indígenas segregados em depoimentos, no Legislativo, por não dominarem o português e o choque cultural em processos de adoção por crianças sem domínio do português. “Foram diversos casos identificados e relacionados para análise e demonstração da necessidade de medidas para integrar esses indígenas, um problema invisível em nossa sociedade”.

A autora, que fez um estudo de caso no Estado do Mato Grosso do Sul, região Centro-Oeste brasileira, também utilizou o termo “acessibilidade linguística” ineditamente. No estudo, Casadei afirma que a inacessibilidade atinge a liberdade do sujeito, causa segregação e discriminação, e por isso mesmo, viola os direitos humanos.

“Pois é da condição humana a liberdade para se comunicar na língua escolhida”, defende. A advogada também assinala ser um direito do indígena se comunicar na língua materna, por opção, e resgata uma decisão judicial proferida em 1999, na qual um ministro se refere ao julgado como “índio alfabetizado, eleitor e integrado à civilização, falando fluentemente a língua portuguesa”.

Um novo direito

A tese provou a existência de um direito à acessibilidade linguística como um direito humano, ainda que não exista legislação nacional sobre o assunto. “Devendo ser cumprido independente de elaboração de lei que o regule, a despeito da existência de tratados internacionais que o Brasil seja signatário que, intuitivamente, resguardam o direito de comunicação do indígena”, explica.

Neste sentido, o trabalho mostrou também algumas tentativas de oficializar línguas indígenas (além do português) nas esferas municipais e estaduais. Na visão da pesquisadora, tais medidas não são suficientes. “Não é capaz de solucionar o problema, diante do vasto território nacional, da existência de inúmeras línguas faladas no Brasil, e diante do fato que o idioma é um assunto de ordem constitucional e não infraconstitucional”.

Casadei avalia que o Judiciário, no âmbito administrativo, está um passo à frente na questão da acessibilidade linguística. “Principalmente, quando se analisa sua atividade jurisdicional, especialmente, a jurisprudência firmada sobre o direito a um tradutor e intérprete, dispensando-os quando o indígena sabe se comunicar em português”, explica.

Políticas públicas

Porém, a inexistência de políticas públicas no Brasil e a jurisprudência não são suficientes para uma solução do problema. A pesquisadora explica que todos os atos corriqueiros para o exercício da cidadania precisam ser acessíveis aos indígenas. “É necessário garantir a presença de tradutores e intérpretes para indígenas nos principais atos de sua vida e para o exercício de seus direitos básicos e fundamentais”, afirma a pesquisadora.

Ela cita como exemplos a tradução de leis, cartilhas sobre cidadania nas línguas indígenas, intérpretes em atendimento em postos de saúde, tradução de receitas médicas, audiências judiciais e depoimentos com suporte de intérpretes, entre outros. “O Estado deve dispor de ferramentas de tradução e interpretação e um atendimento feito, preferencialmente, por indígenas bilíngues. Somente assim podemos esperar uma relação comunicativa de igualdade, em que todos possam compreender e ser compreendidos, respeitando-se os costumes e a tradição dos povos indígenas brasileiros”, completa.

A autora conclui que os indígenas padecem com a imposição do idioma português e as dificuldades para se comunicar na língua oficial, e não encontram amparo para viabilizar a comunicação em suas próprias línguas.

*Com informações da USP
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