Com perfis do acadêmico ao ativista, empreendedores africanos valorizam raízes na moda

A senegalesa Sokhna Serigne Kene Ndiaye em sua loja África Arte, em Laranjeiras, na Zona Sul do Rio de Janeiro (Reprodução/ Lucas Seixas/Folhapress)

Com informações Folha de São Paulo

RIO DE JANEIRO – O casal iniciou o negócio para ajudar a pagar os estudos. Hoje, Mamour é professor universitário, enquanto Sokhna administra a grife. Além de ter uma loja física em Laranjeiras, bairro da Zona Sul do Rio, a empreendedora aumentou o alcance da marca por meio de vendas online.

“Já trabalhei com vários produtos do continente africano como cestarias, máscaras, tecidos e moda em geral, mas acabei focando em moda para melhor planejar e gerenciar o trabalho”, conta. “Temos, praticamente, 250 mil seguidores nas redes sociais, além de 10 mil clientes cadastrados no whatsApp e no email”.

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Embora tenha experiência comercial, no Brasil, Sokhna ainda encontra dificuldade para obter crédito, situação agravada pela alta da taxa Selic. “Em geral, não há acesso [a crédito], e, quando temos, os juros são desumanos”.

As taxas elevadas desmotivaram Benazira Djoco a buscar financiamentos. Nascida na Guiné-Bissau, ela é estilista e dona da grife de moda praia que leva seu nome.

“Não quero pegar crédito, tenho outro tipo de ideia para investir. Sei dos perigos e sou muito pé no chão”, afirma.

MEI

Ela chegou ao Brasil ainda adolescente para concluir os estudos, após ter passado por períodos de guerra em seu País. Além de cuidar da sua empresa, Benazira é ativista social e busca orientar outros imigrantes africanos.

“Uma das coisas que as pessoas sempre comentam comigo é que querem se tornar MEI [microempreendedor individual], mas estão com os documentos vencidos. Eu as aconselho a fazerem capacitação e mentoria para terem um norte”, diz ela, que menciona o Sebrae e o Acnur (Alto Comissariado da ONU para os Refugiados) como alternativas a quem precisa de apoio.

Vanessa Tarantini, associada de soluções duradouras do Acnur, confirma que um dos primeiros desafios é regularizar o negócio.

Embora não haja um levantamento oficial, Vanessa diz que, nos eventos de capacitação promovidos pelo Acnur, cerca de 40% dos estrangeiros presentes não têm empresa registrada. Uma das barreiras é a dificuldade em entender as regras do Brasil. As informações disponíveis, diz, não são suficientemente claras.

“Ainda que não sejam reconhecidos como refugiados, os estrangeiros podem ter o MEI ou serem contratados até para vagas de trabalho temporário. O que falta é informação e acesso, porque há dificuldades com o idioma, por exemplo”, afirma Vanessa.

O advogado Jonathan Mazon, sócio do escritório Junqueira, explica que há complicações no caso de a empresa ser estabelecida a partir do exterior, o que torna o processo mais burocrático.

“Quando o negócio é constituído por estrangeiro residente no Brasil, o processo é praticamente idêntico ao que seria aplicável a um brasileiro residente no País”, afirma.

Mas os problemas de informação não são exclusivos de pequenos empreendedores. “Entender a legislação societária e as regras tributárias são aspectos extremamente difíceis e custosos para qualquer companhia estrangeira que pretenda investir no Brasil. A infraestrutura logística, a obtenção de insumos e a mão de obra são desafios adicionais”, afirma a advogada Liz Dell’Ome, que integra a Associação Americana de Advogados de Imigração.

Qualificação

As dificuldades, contudo, não limitam os planos de crescimento. “Estudo o comportamento do mercado nos países e cidades que pretendo atingir para saber como posso levar o meu produto e verificar a aceitação”, conta Benazira.

Sokhna, da África Arte, está mais cautelosa. Muitas das atividades de sua empresa, como eventos realizados em São Paulo, Minas Gerais e Bahia, foram interrompidas devido à pandemia e à variação cambial. “O momento não é de expansão, é de sobrevivência. Existem muitas variáveis que não dependem da gente”.

Para quem resistiu à pior fase da crise sanitária, é tempo de recomeço. Após 12 anos comercializando suas roupas em uma banca de rua, a senegalesa Diamou Fallou Diop, mais conhecida como Mama, abriu há dois meses sua primeira loja.

Mama conta que já trabalhava com moda, no Senegal, mas enfrentou problemas em seu país —chegou a ter tecidos e máquinas de costura furtados de seu ateliê. No Brasil desde 2007, tenta refletir a cultura de seu país nas criações: todos os tecidos são importados do continente africano e chegam pelo aeroporto de Guarulhos. “Às vezes, a Polícia Federal deixa a mercadoria entrar, às vezes, tudo é apreendido”.

Mesmo antes de alugar sua loja física — que fica na Praça da República (Centro de São Paulo) e se chama Mama Nossa Cultura —, Diamou já era MEI. Hoje, ela emprega três funcionários, e entre os clientes estão os atores Flavio Bauraqui e Bukassa Kabengele.

Histórias como a de Mama mostram que não há grandes dificuldades para se legalizar o próprio negócio, no Brasil, mas ainda existem muitos pontos a evoluir.

“Apesar de estarmos melhorando, o ambiente empreendedor ainda é complexo no Brasil. Temos muita insegurança jurídica, com uma legislação trabalhista antiga, apesar de a reforma de 2017 ter flexibilizado alguns pontos”, afirma Roque Almeida, presidente executivo da empresa de inteligência de negócios Matter&Co.

“Outro desafio é a baixa qualificação da mão de obra. Encontrar as pessoas certas para trabalhar no seu negócio, e no tempo certo, é bem complicado para empresas iniciantes”.

Perguntada sobre como faz para lidar com tantas questões, Sokhna, da África Arte, responde com uma frase atribuída à sua ancestralidade. “Para muitos, as dificuldades são montanhas, mas o que nos faz tropeçar são as pedras no caminho”, diz. “Optei por ser empreendedora, tenho que assumir todos os riscos”.

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