Consciência Negra: iniciativas na Amazônia usam arte para combater racismo

Mural com personagens do Direito à Memória. (Foto: Keila Sankofa)
Yana Lima – Da Revista Cenarium Amazônia

MANAUS (AM) – Iniciativas não governamentais lideradas por defensores da igualdade racial têm empregado novas abordagens para desafiar e superar as barreiras do racismo estrutural. Exemplos disso são os projetos “Direito à Memória”, em Manaus, e o “Espetáculo IFÉ”, em Rondônia, que utilizam as artes visuais e o teatro como ferramentas para sensibilizar a população na luta contra o racismo, buscando reparação histórica. Essas ações incorporam à expressão artística a essência do Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro.

Em Rondônia, o número de denúncias de racismo aumentou 41% em um ano, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O Estado ocupa o segundo lugar no ranking de estados com maior incidência de práticas racistas no Brasil, ficando atrás apenas do Rio Grande do Sul (veja os detalhes abaixo).

Para contribuir na mudança dessa realidade, surgem iniciativas como o Espetáculo ÌFÉ, que combate a intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana. Esse termo, aliás, tem sido substituído pela expressão “racismo religioso”, conforme a definição da cartilha Terreiros em Luta, que abrange as violências que expressam discriminação e ódio em relação às tradições e culturas afro-brasileiras e seus praticantes.

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Ensaio fotográfico de divulgação do espetáculo ÌFÉ (Foto: Anne Sales/Divulgação)

A peça teatral da companhia Beradera de Teatro tem produção do Grupo Caixa Mágica de Artes Integrada. Dirigida por Raoni Amaral, a peça traz à luz a vida e legado de Mãe Eunice da Oxum e seu terreiro Ilê Axé Oxum Aladê. Os cenários retratam desde os rituais sagrados até os desafios enfrentados pela comunidade negra no início da construção do Estado de Rondônia.

Espetáculo IFÉ combate o racismo religioso desde 2016 (Foto: Divulgação)

Inspirado por uma experiência pessoal com uma mãe de santo na infância, a obra de Raoni Amaral ganhou vida em 2016. O espetáculo resgata e preserva histórias, tradições e contribuições culturais dos terreiros de matriz afro-religiosa em Porto Velho.

Espetáculo se consolida como voz de resistência, em meio a um cenário de racismo e intolerância religiosa, em Rondônia (Vídeo: Reprodução/Instagram)

Amaral afirma que a produção enfatiza o valor da diversidade étnico-religiosa-social, e sensibiliza o público sobre a importância do respeito e da empatia às religiões e matrizes afro-amazônicas, em meio a um cenário atual de intolerância religiosa em Rondônia.

“A peça desafia tabus religiosos, desmistificando preconceitos enraizados sobre as práticas religiosas. Ao dar voz às narrativas das religiões de matriz africana na Amazônia, a peça contribui para a quebra de estigmas, promovendo o entendimento e respeito entre diferentes credos e crenças”, destaca Raoni.

Espetáculo IFÉ resgata contribuições culturais dos terreiros de matriz afro-religiosa em Porto Velho (Foto: Luana Lopes/Divulgação)

De acordo com os levantamentos mais recentes, em meados de 2021, foram registrados mais de 400 terreiros em Rondônia, abrangendo práticas como umbanda, candomblé, jurema, tambor de mina, e aqueles que envolvem mais de dois segmentos de culto religioso, todos do axé.

Direito à memória

Keila Sankofa é uma artista e produtora audivisual e desenvolve, em Manaus, o projeto Direito à Memória  – Outras Narrativas (@direitoamemoria), que utiliza a arte para resgatar memórias e trazer à tona nomes de figuras negras do Amazonas.

Projeto Direito à Memória – Outras Narrativas (Foto: Divulgação)

Realizado pelo grupo Picolé da Massa – DaVarzea das Artes (@grupopicoledamassa), o projeto iniciou em 2018, como uma resposta à falta de reconhecimento e valorização das contribuições das pessoas negras, especialmente educadores, professores, intelectuais e estruturadores do Estado.

Equipe do Direito à Memória cola estandartes em 40 ônibus com as imagens e descrição dos personagens coletados na pesquisa. (Foto: Alonso Júnior)

O racismo estrutural, destaca Keila, resulta em um apagamento na consciência coletiva, onde figuras importantes são ignoradas, enquanto praças são adornadas com estátuas de colonizadores e a história é distorcida. O projeto, que utiliza múltiplas mídias, incluindo intervenção urbana e produção de filmes como “Alexandrina – Um relâmpago”, que busca resgatar e recontar as histórias de 13 figuras fundamentais para o Estado, desafiando o apagamento provocado pela estrutura racista.

Keila Sankofa é artista visual e produtora audiovisual (Foto: Divulgação)

“Esse racismo proporciona, na cabeça da população, um apagamento. As pessoas não sabem quem são essas pessoas importantes. As próprias praças são cheias de estatuetas, de colonizadores, de assassinos. Pessoas que vieram para cá extrair muitas das nossas riquezas e as pessoas que, tanto do passado quanto do presente, que é o que o direito à memória trabalha, são apagadas. E esse apagamento é proposital, a partir dessa estrutura racista que só olha os nossos corpos como estruturadores, nunca como produtores de pensamento”, avalia.

O Direito à Memória é uma plataforma que transcende as barreiras tradicionais, trazendo à tona narrativas muitas vezes esquecidas e proporcionando renda para artistas negros e indígenas, reforçando a importância do reconhecimento econômico desses potenciais muitas vezes ignorados. Além disso, o projeto promove intervenções urbanas, ocupação de ônibus com estandartes contendo imagens e links para as histórias das figuras homenageadas, com foco na população negra.

O curta “Alexandrina – Um relâmpago” levou dois prêmios no 5º Festival de Cinema da Amazônia (Foto: Divulgação)
Mídia e Diversidade

O racismo estrutural costumeiramente exclui pessoas negras dos espaços de poder, inclusive da mídia. Neste contexto, a REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA assumiu o compromisso de romper com o padrão por meio do programa “Cenarium Diversidade“, conduzido pela advogada e jornalista Luciana Santos. A ideia é quebrar barreiras ao oferecer espaço para vozes negras, contribuindo para uma narrativa mais inclusiva e representativa.

“Durante muito tempo, não se via pessoas negras com frequência nos meios de comunicação, e isso tem muito a ver com a nossa própria história, com essa questão da invisibilidade da população negra. E a REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA vem abrir esse espaço; eu posso dizer até que de forma pioneira no Amazonas. A gente começa a ver em outros veículos outras pessoas negras, mas nem sempre em papéis nos quais elas possam emitir opinião”, pontua a apresentadora, que também é advogada, mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Público, Direitos Humanos e Processo Civil; e Africanidades e Cultura Afro-Brasileira.

Luciana Santos é a apresentadora do Cenarium Diversidade (Foto: Revista Cenarium)

O programa Cenarium Diversidade está em sua terceira temporada, disponível no canal TV Cenarium Amazônia, no YouTube. Entre os convidados estão pesquisadores, professores, artistas, escritores, empreendedores, líderes comunitários e de movimentos sociais. A proposta é debater temas atuais, sempre a partir do ponto de vista das minorias sociais, que nem sempre têm espaço na mídia tradicional.

“Por mais que a gente debata outros temas além da questão racial, em todos eles, ele acaba de alguma forma sendo inserido, porque o debate racial é o grande tema no nosso País. Todos os problemas sociais no Brasil perpassam pela questão racial”, afirma Luciana Santos.

As estatísticas revelam uma forte disparidade em vários aspectos da vida das pessoas negras, que aparecem em posição desfavorável nos índices de violência policial, encarceramento, acesso à educação, economia e insegurança alimentar, o que destaca a persistência do racismo sistêmico no Brasil.

Dia da Consciência Negra

Em um sábado de 1971, um grupo de 12 universitários negros se reuniu em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, Estado que hoje lidera o ranking de casos de racismo, para questionar a legitimidade do 13 de maio, data da assinatura da Lei Áurea, como data representativa para o povo negro.

Um dos primeiros atos que evocaram o Dia da Consciência Negra em Porto Alegre (Foto: Divulgação)

Entre eles, estava o advogado Antônio Côrtes, de 69 anos, que ainda vive no Estado. “Fizemos uma analogia com a construção mítica do Tiradentes. Em 1971, formalizamos que, se a morte dele era lembrada, também tínhamos que lembrar a de Zumbi. Estruturamos então a proposta de substituir o 13 de maio pelo 20 de novembro, que seria uma data escolhida por nós, não pela oficialidade. Era uma tomada de consciência”, explicou em entrevista ao Geledés.

O advogado gaúcho Antônio Cortês participou do grupo de estudos que lançou a data do 20 de novembro como Dia da Consciência Negra no Brasil. (Foto: Leo Caobelli/Folhapress)

Zumbi foi o último líder do Quilombo dos Palmares e também o de maior relevância histórica. Após pesquisas sobre o quilombo, o grupo decidiu adotar o 20 de novembro, data da morte de Zumbi, como alternativa mais significativa. O movimento cresceu nacionalmente, culminando na oficialização do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, em 2011.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, o Rio Grande do Sul registrou 2.486 casos de racismo, uma taxa de 22,8 por 100 mil habitantes em 2022, muito à frente do segundo colocado, Rondônia, que registrou uma taxa de 5,8, com 92 casos no mesmo ano. O Amapá aparece em terceiro lugar no ranking, com 38 casos, ou seja, 5,2 por 100 mil habitantes.

Enquanto o racismo é entendido como um crime contra a coletividade, a injúria é direcionada ao indivíduo. Neste segundo caso, a situação muda: o Distrito Federal tem a maior incidência (633 casos), seguido de Santa Catarina (1.545 casos) e Mato Grosso do Sul (468 casos). Estados como São Paulo e Espírito Santo tiveram alguns dados indisponíveis, no momento da pesquisa, que cruzou números de secretarias estaduais de segurança pública, polícias, dados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE ) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

* Colaborou Camila Lima, de Porto Velho (RO).
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