CPI contra Júlio Lancellotti revela aporofobia e polarização, avaliam especialistas

Padre Júlio Lancelloti em ação social na Cracolândia, em São Paulo (Foto: Divulgação)
Adriã Galvão – Da Revista Cenarium Amazônia

BOA VISTA (RR) – A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das organizações não governamentais (ONGs), que tem como principal alvo o padre Júlio Lancellotti, tem relação com a aporofobia, a rejeição às pessoas pobres. O termo foi difundido no Brasil pelo padre Júlio Lancellotti enquanto denunciava cidades que praticam a discriminação. A análise é do sociólogo Rodrigo Chagas, da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Ele explica que o fenômeno, apesar de uma motivação política, também tem viés social.

Em movimento encabeçado pelo vereador Rubinho Nunes (União Brasil), a Câmara Municipal de São Paulo quer investigar a atuação do religioso junto à população em situação de rua e dependentes químicos na Cracolândia, região central da cidade. Entre as organizações a serem avaliadas estão o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto e o projeto de militância A Craco Resiste, conduzidos pelo religioso.

Padre Júlio Lancellotti em ação social na Cracolândia, em São Paulo (Foto: Divulgação)


Em entrevista à REVISTA CENARIUM, o sociólogo Rodrigo Chagas avalia que a perseguição contra o padre Júlio é “uma tentativa de moralização do processo e criminalização das pessoas que atuam em defesa dos moradores de rua, um movimento que também é fruto da polarização da política no Brasil nos últimos anos”.

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Ele pontua que a extrema direita tem uma tendência de criminalizar tudo o que se relaciona com movimentos sociais. “Isso mostra o quanto o Brasil se apequena nos debates e soluções reais para seu próprio povo”, completou.

Aporofobia

Além da polarização política, aporofobia, o ódio aos pobres, também é apontada como uma das causas dessa perseguição. Embora seja um fenômeno histórico, só ganhou nome próprio há cerca 20 anos. De origem grega, á-poros (pobres) e fobos (medo), a aporofobia se refere ao medo e à rejeição aos pobres.

A palavra passou a ser difundida recentemente no Brasil com uma campanha do padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, de São Paulo, contra as cidades que a praticam. Ele conta que recebeu centenas de imagens de aporofobia no país.

Em entrevista à Carta Capital, padre Júlio Lancellotti explica o conceito de aporofobia (Vídeo: Youtube)


A palavra foi criada pela filósofa espanhola Adela Cortina, nos anos 1990, que faz uma relação com a pobreza e a imigração. Para ela, muitas vezes o ódio a migrantes ou refugiados, por exemplo, deriva da situação de miséria em que essas pessoas se encontram, e não da condição de estrangeiros. O termo foi eleito a palavra do ano de 2017 pela Fundación del Español Urgente (Fundéu BBVA).

“Não rejeitamos estrangeiros se forem turistas, cantores ou atletas famosos, rejeitamos se forem pobres. É comum tratar bem quem pode nos fazer favor ou dar algo em troca e abandonar aqueles que não podem nos dar nada disso, ressaltou Adela em entrevista à BBC.

Imigração

No Brasil, a aporofobia está em todos os lugares, e fenômenos como o alto índice de dependentes de drogas – como ocorre na “Cracolândia”, em São Paulo – e a imigração – como ocorrem em Roraima – acentuam este fenômeno. Enquanto chegavam os primeiros grupos de imigrantes venezuelanos no Estado de Roraima, pesquisadores começaram a avaliar a relação e o comportamento entre roraimenses e venezuelanos. Dentre as respostas para a imensa rejeição aos “hermanos”, estava a aporofobia.

Uma pesquisa elaborada em 2020, a assistente social Daiane Lacerda tenta entender justamente a aporofobia sofrida por migrantes em Roraima. Em sua conclusão, ela aponta que as relações transfronteiriças, a exemplo do Brasil e Venezuela, são caracterizadas especialmente pelo viés econômico e não social. Ou seja, para além da xenofobia, o que impede a integração sociocultural não é a origem e, sim, o capital possuído pelo migrante.

Migrantes ocupam área em frente à rodoviária de Boa Vista (Wenderson Cabral/Reprodução)

A pesquisadora e doutoranda em comunicação Sheneville Araújo baseou sua tese de mestrado na relação entre a migração e a aporofobia. Ela considera que a possível CPI contra o padre Júlio Lancellotti vai além do ódio aos pobres.

“Temos visto o fenômeno nos cortes no ‘Tiktok’ eleger pessoas. Então, falar, atacar determinadas figuras para obter projeção política é uma das lentes que podemos buscar em enxergar”.

A pesquisadora também faz uma crítica ao disfarce do poder público, que modifica bairros a fim de deixá-los mais atrativos esteticamente, sem promover uma ação concreta para o real problema do local. Ela cita o caso dos dependentes químicos ainda presentes nas redondezas do Parque do Rio Branco, o antigo Beiral, na capital de Roraima.

Região conhecida como Beiral, a“Cracolândia” de Boa Vista deu lugar ao Parque do Rio Branco, sem política para resolver problemas sociais da região (Foto: Divulgação / Prefeitura de Boa Vista)

“Promover uma CPI parece muito mais eficaz para certos tipos de políticos do que parar para pensar em seus gabinetes e colocarem no papel uma ideia para um projeto de lei com ações concretas para fazer alto por aquela população”, analisou.

CPI

No requerimento, o vereador argumenta a necessidade de investigação das organizações da sociedade civil, pois “algumas recebem financiamento público para realizar suas atividades”. Mesmo o coordenador da Pastoral do Povo de Rua já tendo afirmado, por meio de nota. que  não pertence “a nenhuma organização da sociedade civil ou organização não governamental que utilize convênio com o Poder Público municipal”.

A própria Arquidiocese de São Paulo disse, por meio de comunicado oficial, que acompanha “com perplexidade” a perseguição ao padre Júlio e questionou o interesse do vereador Rubinho na instalação da comissão. “Perguntamo-nos por quais motivos se pretende promover uma CPI contra um sacerdote que trabalha com os pobres, justamente, no início de um ano eleitoral?”,  diz a nota.

Editado por Yana Lima

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