Crônicas do cotidiano: O retrocesso

São muitos os que estão empenhados em trazer de volta o lixo e a podridão do tal processo civilizatório ocidental e não era isso que, pelo menos, vociferava Camões no poema fundador da nossa língua pátria:

As armas e os barões assinalados,/Que da ocidental praia Lusitana,/Por mares nunca dantes navegados,/Passaram ainda além da Taprobana,/Em perigos e guerras esforçados,/Mais que prometia a força humana,/E entre gente remota edificaram/Novo Reino, que tanto sublimaram.

A última frase da estrofe foi maculada! Mostrou ao mundo, sobretudo aos lusófonos, que acorreram à Portugal em busca da prosperidade, desde a entrada do país na Comunidade Europeia, que não é bem assim. Que o diga o vídeo que circula na internet, mostrando uma “senhora” portuguesa, num show de xenofobismo, ofendendo brasileiros no Aeroporto da Cidade do Porto.

PUBLICIDADE

“Heróis do mar, nobre povo”, não cuspam no prato em que comeram: demos-vos a carne, o sangue e a vida de parte dos nossos povos originários; adotamos, a mando dos vossos reis, o tráfico negreiro e a escravidão, que enriqueceram e nutriram a nobreza e a elite de Portugal, tal qual a nossa, mais tarde; recebemos os desvalidos da “Barca do Inferno”, dando-nos os doentes, os prisioneiros e degredados políticos como descarte; demos-vos o pau-brasil que sustenta o vigamento e o piso dos palácios suntuosos do reino;

Demos-vos o ouro e as pedras preciosas que ornamentam as igrejas, os palácios e outros símbolos de poder, e que garantiram o pão de cada dia de um reino esbanjador e explorador da mais valia dos colonos; demos-vos abrigo, quando fugitivos da ira de Napoleão, da decadência econômica e da pobreza, em vários momentos de crise do capital. Portugal nos impôs: a Cruz de Cristo, que com muito gosto aprendemos a carregar, mesmo escondendo por trás dos altares os ícones sagrados de nossas próprias crenças; a Língua Portuguesa, que também soubemos fazer nossa;

A Escravidão, essa ignomínia, causa de muitos sofrimentos e matriz de tantos preconceitos; a arrogância das nossas elites, iguais às vossas, adestradas por mimetismos na veneração à sem vergonhice; a distinção aos intelectuais, àqueles que se dizem brancos e herdeiros do pensamento ocidental, treinados para mentir, escrevendo uma história às avessas.

Não cuspam no prato em que comeram: agradeçam até ao Príncipe que nos deram, aqui Imperador Autoritário, mas suficientemente corajoso para renunciar ao Trono do Brasil, atravessar o Oceano Atlântico, jurar a Constituição Democrática do Porto, restaurar a Monarquia Portuguesa e dá-lhe a forma Liberal da Europa “civilizada” do século XIX.

Não cuspam no prato em que comeram: nós recebemos fraternamente os deserdados da ditadura de Salazar, numa leva enorme de gente que se espalhou pelo Brasil e virou professor, artesão, comerciante ou agricultor. O que sobrou de todo esse balanço? Sempre sobra alguma coisa! No frigir dos ovos, sobra o panteão de gênios que não nos pode faltar, dentre eles: Camões, Vieira, Saramago, Fernando Pessoa e suas tantas “pessoas”, Amália Rodrigues e outros.

Sobram-nos, ainda, educadores dedicados ao ofício de disseminar o saber, nas Universidades Portuguesas e Brasileiras, construindo conosco uma linha de pensamento mais próxima à visão descolonizada do ocidentalismo. Enfim, sobram-nos os coirmãos portugueses que condenam as posturas supremacistas, os xenofobismos e sabem partilhar com bondade os frutos da caminhada histórica a que fomos exortados a fazer lado a lado, suportando-nos, complementando-nos para enfrentar a bonança e as intempéries da vida. Sobram os portugueses e brasileiros, que se amaram loucamente; os que se enraizaram aqui e construíram famílias exemplares; os portugueses que não veem o mar como via de mão única.

Portanto, convidamos todos a evitarem os retrocessos do processo civilizatório. Que os portugueses desaforados ganhem juízo: deixem-nos contemplar com gosto o céu azul de Lisboa; saborear o pastel de nata de vossas confeitarias; comer o bacalhau sem pensar nas espinhas; contemplar a visão lúdica do Douro, inebriados com seus vinhos, como se fosse o caminho do céu.

Em troca, torceremos para que saibam lidar com os neofascistas, que, incomodados com o que se passa por aqui, migram para a “santa terrinha” e estão a engrossar as fileiras da vossa extrema direita, de onde brotam espécimes como a “desbocada” do Aeroporto da Cidade do Porto. Quanto aos demais brasileiros, trabalhadores migrantes, iguais aos vossos, deixai-os trabalhar em paz!

(*) Walmir de Albuquerque Barbosa é jornalista profissional, graduado pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e professor emérito da Ufam.
PUBLICIDADE
(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.