Crônicas do cotidiano: “Os canhões de Navarone” e o Brasil

Não vamos falar da 2ª Guerra Mundial, apenas trazer como parte do título o nome de um filme que empolgou várias gerações, desde 1961, quando foi lançado. O mundo vivia a “primavera democrática do pós-guerra”, afinal, os vencedores representavam a vitória contra as trevas do nazismo. As feridas da guerra ainda estavam abertas, mas tudo em processo de reconstrução sob a nova direção das potências emergentes. As ruínas, espalhadas por toda a Europa e o Oriente, ainda estavam visíveis, servindo de cenário para a nova indústria do entretenimento e das consciências, como introito da Guerra Fria, que se prenunciava.

Os sobreviventes da Grande Guerra estavam vivos, como heróis e plateia da indústria cinematográfica. Assim, o filme é peça de “ficção realística”: os nazistas dominam a ilha grega de Navarone, onde instalam dois canhões poderosíssimos que impedem a movimentação das tropas britânicas encurraladas na ilha de Kheros, na costa da Turquia, no Mediterrâneo.

Para vencer o poderio nazista, os aliados armam uma trama de “inteligência” para implodir a fortaleza nazista e retomar as operações militares na área. E para dar crédito aos autores, reconhecemos os talentos de Alistair MacLean, autor do romance de onde sai o roteiro do filme; J. Lee Thompson, o diretor; e atores famosos como Gregory Peck e Anthony Quinn e outros; em technicolor, superprodução conjunta de ingleses e americanos.

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Depois dessa sinopse, alguém pode perguntar: onde entra o Brasil nisso? Somente com os espectadores que passaram horas nas filas das Casas Exibidoras de Cinema para assistir ao filme? Tendo sido um deles, posso testemunhar que valeu e foi muito mais que o amor à Sétima Arte!

Era o que tínhamos à época como a maior diversão popular. Muitos jovens e adolescentes viveram os momentos calorosos de suspense, de extremo perigo oportunizados no filme e, neles, o aconchego entre parceiros ou parceiras os transformou em coadjuvantes dos atores heróis, no escurinho do cinema; e, sem nenhum pejo, até os mais politizados deram folga, por longos momentos, à tal “consciência política”, com seus ódios eternos ao “imperialismo” da ocasião!

Agora, perdida aquela inocência do passado rosa, os Canhões de Navarone estão apontados para o mundo como uma alegoria dos novos tempos a nos encurralar nos espaços exíguos das liberdades conquistadas. Trincheiras nas liberdades democráticas estão sendo explodidas pela intolerância dos extremismos; afirmações identitárias se fragmentaram a tal ponto, virando uma Torre de Babel, dificultando todos os esforços de aproximação dos entes que se reconhecem como humanos, cada um no seu lugar de fala; o ideário nazifascista ressurge na forma vintage ou na expressão violenta e escancarada da extrema-direita; as esquerdas, órfãs do operariado e da luta de classes, vagam sem canto e morada; as religiões, encharcadas de hipocrisia e ódio, vociferam e censuram a intimidade alheia, como se donas fossem da verdade moral que nem sempre viveram integralmente. Perderam a compaixão!

Não temos mais um Max Weber para reexplicar a ética protestante desse “neocalvinismo” que associa prosperidade aos interesses inconfessáveis de certos pastores. Não temos mais João 23 desafiando a Cúria Romana, que carregou em liteira um antecessor conservador empedernido. Os grandes líderes se foram com seus discursos de paz que aliviavam as almas. Como não existe vácuo, outros vieram, com cestos e cestos de maldade.

O Brasil tem os seus “canhões de navarone” voltados, infelizmente, para o povo. Foram fabricados: com as concessões de armas e munições para armar civis, e que foram parar nas mãos do crime organizado; com a inépcia de um sistema de justiça que amontoa as vítimas das capturas policias em masmorras fantasiadas de prisão, alimentando o exército do crime liderado por facções que disputam espaços entre si, numa guerra interminável; e com os privilégios dos mandões de sempre, diuturnamente tecidos com as redes da injustiça social, que lhes garantem sombra e água fresca. Qual seria o elenco de atores, candidatos, a implodir a fortaleza da navarone brasileira? As inscrições para a seleção do novo elenco já estão abertas! As apostas também!

Walmir de Albuquerque Barbosa é jornalista profissional.
Revisado por Adriana Gonzaga
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(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

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