‘Decisões de Moraes foram necessárias para conter ditadura’, apontam especialistas em debate no Estadão

Renato Janine Ribeiro (à esq) e Guilherme Casarões (Divulgação)
Daleth Oliveira e João Felipe Serrão – Da Revista Cenarium Amazônia

SÃO PAULO (SP) E MANAUS (AM) – Em meio ao debate sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/2021, que limita poderes individuais dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), analistas avaliam que decisões monocromáticas do ministro Alexandre de Moraes foram necessárias para conter um risco de nova ditadura no Brasil.

A avaliação foi feita pelo ex-ministro da Educação e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro, e endossada pelo cientista político e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Guilherme Casarões. A professora da Universidade de São Paulo (USP), FGV e diretora do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac), Maria Tereza Sadek, também participou do debate.

A discussão ocorreu durante a mesa “Separação dos Poderes Constitucionais: Ênfase no Presidencialismo de Coalizão e suas consequências para o aumento da corrupção”, mediada pela diretora-geral e fundadora da REDE CENARIUM AMAZÔNIA, Paula Litaiff, no evento promovido pelo Estadão, em parceria com Inac.

PUBLICIDADE

“O que nos salvou de uma ditadura não foi o judiciário inteiro, foi uma pessoa: o ministro Alexandre de Moraes. As instituições preservaram a democracia? Nem tanto. Se não fosse o Alexandre de Moraes, seria muito pouco provável. A maior parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal se curvou com muita facilidade aos desmandos, deixaram muita coisa acontecer. Nossa Constituição nos primeiros artigos e nos últimos capítulos diz tudo o que o Brasil quer ser. Tudo isso foi sendo violado por um presidente que era contra essa Constituição e isso não foi barrado”, pontuou Janine.

Casarões adicionou que Moraes foi necessário para o momento em que o Brasil vivenciava, que foi principalmente o aumento de fake news sobre a segurança do sistema eleitoral, colocando em risco a democracia.

O Alexandre de Moraes atuou em muitos casos diante de um problema de ordem jurídica que era desconhecido da sociedade brasileira até então, como o caso das fake news. Como é que você lida com mentiras estruturadas sistematicamente? Esse é um problema que a gente não tinha antes (…). E eu sou mais do time de que o judiciário errou, mas ele ainda é muito fundamental para os acertos que a gente quer que garantam a democracia“, disse Casarões.

Durante o mandato de Jair Bolsonaro, o ministro Alexandre de Moraes agiu em casos que deixaram o presidente e seus apoiadores irritados. Em maio de 2020, o magistrado autorizou a realização de uma operação da Polícia Federal (PF) contra fake news, que atingiu integrantes do Governo Bolsonaro. Na época, o então presidente Jair Bolsonaro (PL) criticou a decisão do magistrado e disse que as decisões do ministro eram pessoais.

No Dia da Independência do Brasil de 2021, durante ato antidemocrático em São Paulo, que pedia o fechamento do STF, Bolsonaro chegou a afirmar que não respeitaria qualquer decisão do ministro Alexandre de Moraes.

Em meio às investidas do ex-presidente contra o Supremo, Bolsonaro apresentou ainda em 2021 um pedido de impeachment de Moraes ao presidente do Senado, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Pacheco arquivou o pedido inédito feito por um chefe do Executivo.

“Qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, este presidente não mais cumprirá. A paciência do nosso povo já se esgotou. Ele tem tempo ainda de pedir o seu boné e ir cuidar da sua vida. Ele, para nós, não existe mais! Liberdade para os presos políticos! Fim da censura! Fim da perseguição àqueles conservadores, àqueles que pensam no Brasil”, disse à época.

O ministro Alexandre de Moraes é criticado por juristas e apoiadores de Bolsonaro por presidir inquéritos, entre eles o das Fake News e dos Atos Antidemocráticos, que deram incumbências a Moraes que vão além do papel de juiz.

Especialistas apontam que o STF decidiu agir de ofício, isto é, sem ser provocado, por conta da inércia da Procuradoria-Geral da República (PGR), presidida pelo procurador-geral Antônio Aras, diante da conduta de Jair Bolsonaro.

PEC

O debate no evento começou quando a mediadora Paula Litaiff questionou os participantes da mesa se a PEC que limita o poder do STF, se aprovada, pode aumentar a codependência dos poderes Executivo e Legislativo. O Senado Federal aprovou, em 22 de novembro, a PEC 8 de 2021, que limita decisões individuais na Corte. A matéria ainda será analisada pela Câmara dos Deputados.

A proposta foi anunciada após parlamentares considerarem que o STF vem interferindo em temas que seriam, segundo eles, atribuições do Congresso Nacional. A PEC define que decisões monocráticas não podem barrar a eficácia de uma lei ou norma de repercussão geral aprovada pela Casa Legislativa e sancionada pela Presidência da República, por exemplo.

Para Guilherme Casarões, é necessário primeiro entender o contexto em que a PEC surgiu, que foi após o desequilíbrio entre os Três Poderes, causado pela popularização dos ministros do STF em casos midiatizados, como a Lava Jato e o Mensalão.

Eu me recordo de dois episódios que foram muito marcantes para mim, como professor, em 2014 e 2018. Primeiro dia de aula, véspera de Copa do Mundo, em ambos os casos, eu perguntei para os alunos a escalação da Seleção Brasileira. Eles tropeçaram em um ou outro, mas no final, não conseguiam me dizer todos os jogadores titulares. Em seguida, pedi que me falassem os nomes dos 11 ministros do STF. Eles sabiam de cor. Eu fiquei muito assustado porque eu estava lidando com alunos muito jovens e nem sempre politizados, mas que, à certa altura, a efeito de Mensalão, Lava Jato, e todo esse processo de centralidade do judiciário, inclusive, midiática, acabou colocando o STF no centro das nossas preocupações políticas, e a gente tem que entender, com base na nossa Constituição Federal, que o STF é uma instância contramajoritária e sua função é assegurar que a Constituição e as leis sejam observadas“, contextualiza o professor da FGV.

Casarões destaca que o STF, com o poder político que tem, não pode se arvorar em um “ativismo político que não lhe foi outorgado pela própria Constituição” e que o desequilíbrio entre os Três Poderes foi identificado, entre outras coisas, tendo como causa as decisões monocráticas. A PEC é uma sinalização de que existe um desiquilíbrio que tem que ser de alguma forma resolvido.

Mesmo que essa PEC tenha problemas, eu acho que é importante que nós, cientistas políticos, pensem na reconstrução do equilíbrio entre poderes no Brasil. Tivemos um governo em particular, que foi o Governo Bolsonaro, que desequilibrou completamente a relação entre os Três Poderes. Então, é desse ponto de partida que precisamos pensar nesse reequilíbrio. Mas, se essa PEC é uma solução ou há outras soluções, é uma coisa que a opinião pública tem que avaliar“, finaliza o professor.

Contraponto

Para Maria Tereza Sadek, a PEC não limita o STF. “Essa reforma não começou no Legislativo, mas, sim, no Judiciário. A ministra Rosa Weber, por exemplo, quando presidente do STF, ela fez algumas alterações. Além disso, é errôneo se dizer que a PEC limita o Supremo. Ela limita o poder individual dos ministros“, destaca.

O problema é onde ela surgiu e o momento em que ela surgiu. Então, fica uma questão que parece vingança quando, na verdade, essa questão é algo que já vinha sendo discutida no próprio STF. E tem uma questão que me chama muita atenção: por que a lei orgânica da magistratura, que é de 1979, portanto, anterior à democratização do País, não é mexida? Isso tem um impacto muito forte na legitimidade da instituição. Porque no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), quando algum juiz é penalizado, ele pode sair do Judiciário, mas leva seus honorários. Isso para a população é inconcebível, parece um prêmio“, critica Sadek.

Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e conselheiro do Inac, concordou com Sadek: “O conteúdo dessa reforma está correto!”, analisa o especialista.

O próprio prazo de vista já existe há muito tempo. O problema é que os presidentes do STF não implementam isso. Luiz Fux ficou anos em cima de uma discussão sobre os pagamentos excessivos aos juízes, até que saiu um aumento significativo do salário do magistrado e ele liberou. Então, durante anos, os juízes ganharam a mais porque um ministro favoreceu a classe da magistratura, e isso é muito errado“, argumenta o ex-ministro.

Ribeiro relembra casos em que presidentes da Corte que não agiram como deveria, segundo seu entendimento. “Dias Toffoli recusou chamar o golpe de 1964 de golpe. Cármen Lúcia recebeu o presidente Temer na cozinha da casa dela. Tudo isso significou uma ligeireza de ministros do STF que não deveria existir. Foram poucos ministros que, nessa fase mais dura, realmente lutaram contra uma desagregação no País“, pontua.

PEC 8/2021

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/2021, de autoria do senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), busca limitar as decisões monocráticas (individuais) dos ministros do STF.

De acordo com a proposta, fica proibida a concessão de decisões monocráticas que suspendam a eficácia de leis ou atos normativos com efeito geral ou que anulem atos dos presidentes da República, do Senado, da Câmara dos Deputados ou do Congresso Nacional.

A PEC foi aprovada no dia 22 de novembro no Senado, com 52 votos favoráveis e 18 contra. A pauta agora segue para a Câmara dos Deputados. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP), vai decidir os ritos necessários para que a pauta vá ao Plenário.

Atos antidemocráticos

A proposta da PEC ocorreu após atos antidemocráticos ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023, quando uma multidão de extremistas invadiu a Praça dos Três Poderes, e promoveu uma série de depredações e vandalismo aos símbolos da República, por não aceitarem o resultado das eleições. O episódio ficou conhecido como “atos antidemocráticos” ou “atos golpistas” do dia 8 de janeiro.

Mais de mil pessoas foram presas na ocasião. A Procuradoria-Geral da República (PGR) indicou a prática dos crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Atos Golpistas, realizada na Câmara dos Deputados, após cinco meses de trabalho, pediu o indiciamento de 61 pessoas, entre civis e militares, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Leia mais: CENARIUM participa de evento do Estadão e Inac sobre ‘Presidencialismo de Coalizão e consequências’
Editado por Jefferson Ramos
Revisado por Gustavo Gilona
PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.