Demora do STF em analisar temas de interesses dos indígenas tem deixado comunidades em risco

O processo do marco temporal discute se a data da promulgação da Constituição de 1988 deve ser usada para definir a ocupação tradicional da terra por indígenas (Reprodução/Cimi)
Da Revista Cenarium*

BRASÍLIA – Apesar de atuar com protagonismo na crise dos Yanomami, a demora do Supremo Tribunal Federal (STF) em analisar temas de interesses dos indígenas tem deixado comunidades sob risco de conflitos com ruralistas, afirmam entidades que acompanham os casos.

O mais importante deles é o processo do marco temporal, que discute se a data da promulgação da Constituição de 1988 deve ser usada para definir a ocupação tradicional da terra por indígenas.

A tese do marco temporal tem aval de ruralistas e é rechaçada por indígenas. A decisão do Supremo sobre o tema incidirá em todos os processos semelhantes.

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Indígenas Waimiri-Atroari participam de cerimônia na aldeia Mynawa, durante encontro para discutir impacto do marco temporal (Lalo de Almeida/17.set.22/Folhapress)

O caso só começou a ser julgado no STF em 2021, inicialmente, na plataforma virtual da Corte, quando o ministro Alexandre de Moraes pediu para ir ao plenário físico.

Quando a análise foi retomada, o relator do processo, Edson Fachin, refutou a tese do marco temporal. Ele disse que uma interpretação restritiva sobre os direitos fundamentais dos povos indígenas atenta contra a Constituição e contra o Estado democrático de direito.

Kassio Nunes Marques, o segundo a votar, reafirmou o marco temporal em um posicionamento que se alinhava aos interesses do Palácio do Planalto, sob Jair Bolsonaro (PL). Moraes, então, pediu vista (mais tempo para análise).

No primeiro semestre do ano passado, o então presidente da Corte, Luiz Fux, chegou a pôr o processo, novamente, em pauta, mas semanas antes da votação o retirou da previsão de julgamento.

À época, o então presidente Bolsonaro vinha fazendo diversos ataques à Corte afirmando que, se o voto de Fachin prosperasse, “seria o fim do agronegócio”.

Ao assumir, no ano passado, a presidência do Supremo, Rosa Weber, se comprometeu com líderes indígenas a pôr, novamente, o marco temporal em pauta. No entanto, o processo não consta na relação de processos a serem julgados pela Corte até o mês de julho — divulgado recentemente.

Procurado, o Supremo afirma que “a pauta do semestre é dinâmica e vai sendo alterada ao longo dos meses”.

“Além disso, há várias datas sem pauta, justamente, para inclusão de novos temas. A presidente do STF, ministra Rosa Weber, informou que levará a julgamento o processo do marco temporal ainda em sua gestão, que termina em outubro de 2023”, afirma a Corte em nota.

“O tema, portanto, ainda pode ser julgado neste semestre ou nos primeiros meses do próximo.”

A falta de conclusão no julgamento do STF, sobre o caso, é usada em diversos casos pelo País para contestar as áreas ocupadas por comunidades, o que aumenta a tensão e a possibilidade de conflitos.

A Terra Indígena Kayabi, por exemplo, teve sua primeira demarcação concluída em 1982 e, depois, em 2013, uma nova portaria ampliou sua extensão. O Estado do Mato Grosso contesta a segunda portaria afirmando, justamente, que, “em 1988, já não havia mais índios [no local] há longo tempo”.

“Para conseguirmos ter um panorama das consequências dessa demora no julgamento, vou citar o caso dos Pataxó, do sul da Bahia. Existe ali uma milícia armada dos fazendeiros que conseguiram cooptar agentes da segurança pública e estão promovendo uma série de violações aos direitos humanos e à vida”, afirma Maurício Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Como o marco temporal é usado como base argumentativa em ações de reintegração de posse contra indígenas, por exemplo, quanto mais tempo demora para ser julgado, outras ações que correm até mesmo em varas menores ficam pendentes de resolução ou abrem brecha para decisões desfavoráveis aos povos.

Além disso, argumenta Terena, a falta de conclusão da análise cria, nos invasores dos territórios, a expectativa de que o desfecho seja favorável a eles e, assim, os incentiva a já ocupar, ilegalmente, as áreas mesmo antes da decisão.

Garimpeiros fugindo das Terras Indígenas Yanomami, em Roraima (Lalo de Almeida/Folhapress)

“São casos que precisam ser julgados, [já que] a demora gera mais invasões dessas terras. Se as pessoas tiveram coragem de invadir o STF, imagina uma terra indígena com pessoas vulneráveis”, diz Juliana de Paula, advogada do Instituto Socioambiental (ISA).

Enquanto isso, alguns tribunais têm aberto processo de conciliação em casos de disputa de terra, mecanismo com efeito semelhante na dinâmica dos conflitos.

Tentou-se, inclusive, que isso acontecesse no processo que definirá a questão do marco temporal, mas o ministro Fachin negou a abertura de processo de conciliação.

“Por mais que [o processo conciliatório] seja aberto de boa-fé, ele gera mais conflitos, gera cooptação de lideranças para aceitar abrir mão da terra com base em falsas promessas, gera expectativa de que área preservada vai ser reduzida ou não demarcada, e isso impulsiona para invasores entrarem no território, o que aumenta a violência”, diz Paula.

Lula assumiu o governo com a promessa de retomar as demarcações de terra, que não aconteceram durante a gestão de Bolsonaro. Segundo os advogados, há a expectativa de que os temas, agora, voltem a avançar no STF.

Outra ação que pode ser julgada ainda neste semestre é a que paralisou a Ferrogrão, projeto ferroviário que era defendido pelo Governo Bolsonaro. O projeto pretende ligar Mato Grosso ao Pará e enfrentava resistências de ambientalistas, de lideranças indígenas e do Ministério Público.

O empreendimento foi suspenso por uma liminar de março de 2021 que questiona a alteração dos limites da Floresta Nacional do Jamanxim, no Pará, para a passagem dos trilhos.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade, no STF, o PSOL defende que a alteração dos limites da floresta não poderia ter sido feita por conversão de Medida Provisória (MP) em lei e que essas modificações afetam povos indígenas da região. O caso foi levado à pauta da Corte também no ano passado, mas não foi julgado.

Terena, da Apib, afirma ainda que há ações movidas pelo movimento indígena contra empreendimentos que não cumpriram a necessidade legal de consulta dos povos indígenas durante o processo de licenciamento.

É o caso, por exemplo, de um processo de indígenas guaranis ligado à usina de Itaipu. Representantes da Comissão Guarani Yvyrupa têm feito reuniões com ministros do STF e do governo no esforço de tentar avançar com a pauta.

(*) Com informações da Folhapress
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