Dia da Mulher: obra revela apagamento feminino na cultura brasileira

À direita, Chiquinha Gonzaga, compositora brasileira; no centro, a escritora Júlia Lopes; e à esquerda, Clementina de Jesus, cantora brasileira (Reprodução/O Globo)
Mencius Melo – Da Revista Cenarium

MANAUS – A obra “Mulheres, Direito e Protagonismo Cultural” (Ed. Almedina Brasil, 670 pág.), coordenada por Cecília Nunes, Flávia Piovesan, Vivian Barbour e Inês Virgínia Soares, traz um importante registro da história das mulheres brasileiras na produção cultural do País, em 48 textos escritos por especialistas: há constatação de que muitos registros foram apagados ou mesmo expropriados das criadoras, como é o caso das compositoras brasileiras.

A coordenadora da obra ‘Mulheres, Direito e Protagonismo Cultural’, a advogada Cecília Nunes, que apontou ‘parentes e companheiros’ como os responsáveis pelos apagamentos (Reprodução)

Um dos dados surpreendentes foi encontrado pela historiadora Ana Carolina Murgel, doutora em História e Cultura pelo IFCH/Unicamp. A pesquisadora imaginava encontrar de 800 a 900 compositoras brasileiras, mas se deparou com o número surpreendente de 7.500 mulheres compondo entre os séculos 19 e início do século 21. A grande maioria delas foi apagada dos registros oficiais, evidenciando uma sabotagem em larga escala com o legado feminino na cultura brasileira.

Em entrevista à REVISTA CENARIUM, a advogada Cecília Nunes falou sobre como a contribuição das mulheres para a música, dança e outras áreas artísticas é ignorada, historicamente, em diferentes regiões do País, mesmo sendo os ambientes artísticos mais plurais. “De fato, apesar dos meios culturais e artísticos serem mais abertos, em geral, para a diversidade, não é certo dizer que são locais em que os direitos das mulheres são plenamente respeitados. A luta pela igualdade de gênero perpassa também essas áreas, e os artigos presentes no livro reforçam ainda mais essa necessidade”, observou.

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Parentes e companheiros

A especialista afirma ainda que na grande maioria, a violência do apagamento ou expropriação foi e é cometida por pessoas próximas. “É amplamente demonstrado em pesquisas que os casos de violência partem, em sua grande maioria, dos próprios companheiros dessas mulheres. No caso da expropriação cultural não é diferente. A intimidade do relacionamento, infelizmente, pode criar um ambiente propício para essas diversas formas de violência contra a mulher”, declarou.

Chiquinha Gonzaga é uma das poucas compositoras do século passado que manteve, a duras penas, a autoria de suas obras musicais (Reprodução/Internet)

Ainda segundo ela, apagar é um gesto brutal. “Esse apagamento do potencial criativo das mulheres se mostra ainda mais perverso quando pensamos na obra intelectual criada por elas, uma vez que a expropriação da autoria atinge a própria dignidade dessas pessoas. Segundo a lei de direitos autorais brasileira, de N° 9.610/98, a obra intelectual é uma criação que advém do ‘espírito humano’. Expropriar uma pessoa de suas próprias criações é atingi-la de forma brutal, em um âmbito íntimo e estritamente pessoal, gerando efeitos danosos duradouros”, criticou.

Questionada sobre a procura por alguma salvaguarda de seus direitos, Cecília respondeu: “Sob a perspectiva do apagamento cultural, o artigo de Ana Carolina Murgel avalia o caso das compositoras brasileiras e o apagamento de seus direitos em relação as suas próprias criações. Por fim, temos o caso analisado pelo artigo de Livia Tinoco sobre as catadoras de mangaba de Sergipe, que fala da luta e disputa política pelo direito de exercer essa importante manifestação cultural”, declarou.

Machismo e patriarcado

Para Cecília, “A sociedade brasileira é machista e isso está enraizado bem mais fundo do que podemos imaginar. Obras como essa, portanto, são de extrema urgência e relevância, vez que possibilita a um determinado grupo de mulheres falar sobre suas experiências, suas lutas e suas reflexões práticas dos direitos culturais e do acesso aos bens culturais. É certo que a mudança desse status quo é algo lento e que demanda muito esforço, mas é necessário trilhar o caminho para que a igualdade de gênero possa ser uma realidade nos diversos âmbitos sociais”, afirmou.

Clementina de Jesus só gravou seu primeiro LP aos 63 anos e passou boa parte de sua vida artística no ostracismo até ser descoberta e apresentada ao grande público (Reprodução/Internet)

Mesmo com os recentes avanços no novo governo, Cecília Nunes tem ressalvas. “É um avanço, mas também é o ‘dever de casa’. Séculos de opressão e desigualdade brutal entre homens e mulheres formaram a sociedade brasileira que temos hoje. Não é uma mudança de governo ou a promulgação de uma lei que revolucionará essa estrutura. Mas isso também não significa que tais mudanças não são necessárias ou relevantes. Como dito, o caminho precisa ser trilhado, as pequenas mudanças constroem as grandes, e é nesse sentido que as ações que objetivam a igualdade de gênero devem ser pensadas e executadas”, ponderou.

Sobre o futuro, Cecília aponta. “Os direitos autorais são uma espécie de direitos culturais, expressamente previstos na Constituição Federal em seu artigo 5°, inciso 27, e artigo 215. Por serem também caracterizados como direitos fundamentais, os direitos autorais ocupam um lugar de especial relevância dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Isso significa dizer que a ofensa aos direitos autorais, culturais e fundamentais é um dano causado, diretamente, à dignidade da pessoa lesada”, finalizou.

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