E não ‘Sou Manaus?’: festival deixa de fora atrações de matriz africana
Prefeitura não anunciou atrações de matriz africana (Divulgação)
Luciana Santos – Especial para Revista Cenarium**
MANAUS (AM) – A Prefeitura de Manaus, por meio da Secretaria Municipal de Cultura (Manauscult), apresentou as atrações nacionais do “Festival Sou Manaus Passo a Paço 2023” e, no espaço cedido à música religiosa, não foram contemplados artistas que representem as religiões de matriz africana, foram anunciados somente artistas das religiões evangélica e católica.
A decisão gerou revolta entre os representantes do Povo do Axé e nos remete à reflexão da escritora norte-americana abolicionista Sojourner Truth que, no século 19, questionou a sociedade sobre a invisibilidade de negros em atos sociais básicos como o apoio na subida de carruagens, no qual só mulheres brancas eram ajudadas. Entre os desabafos históricos da escritora está:
“Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher?”.
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Hoje, eu pergunto aos gestores municipais da capital amazonense: “E não sou Manaus?”. O discurso recorrente das autoridades responsáveis é de que o Estado é laico e a gestão deles também. Maravilha, pois isso é o que se espera tendo como base nossa legislação pátria. Não é algo para ser aplaudido, é a postura que deve ser adotada por um gestor.
Só para lembrar os fatos mais recentes, o Réveillon na Ponta Negra contou com uma megaestrutura para o “espaço gospel” e diversas atrações nacionais evangélicas (com altos cachês, é importante ressaltar), enquanto o espaço onde ocorre há mais de uma década o Festival de Yemanjá não teve o mesmo investimento e os organizadores do evento esperaram até o último momento o cumprimento da promessa de que haveria, dentre os contratados pelo poder público municipal, uma atração nacional.
A situação foi tema de matérias publicadas aqui mesmo na REVISTA CENARIUM, onde há os relatos dos responsáveis pela Associação Toy Badé, instituição que organiza o Festival de Yemanjá. Na ocasião, a convite do Xɛ́byosɔnɔ̀ Alberto Jorge, participei de algumas reuniões com a Manauscult e pude lembrá-los do histórico de apagamento da população negra no Amazonas e sobre a importância da representatividade também nos eventos culturais, até como forma de reparação a essa dívida histórica.
Também tivemos a oportunidade de destacar que há mais de 60 anos, quando a Ponta Negra era um espaço tido como isolado do restante da cidade, o Povo de Axé já utilizava aquela área como lugar de celebração no Réveillon, justamente para poder cultuar com tranquilidade nossos ancestrais, longe da violência do racismo (e dos racistas).
Portanto, a Ponta Negra é, para nós (sim, sou uma mulher de Axé), espaço de conexão com o sagrado. Uma conexão que corre o risco de deixar de existir naquele local, caso medidas efetivas contra o racismo religioso não sejam tomadas durante os dias de evento.
Voltando para o #SouManaus, este é um evento que celebra a cidade de Manaus e seu povo. Entre os manauaras só existem católicos e evangélicos? Já que decidiram por uma noite dedicada a religiões, deveriam ampliar o leque e contemplar todas de maneira igual. Aí alguns vão dizer: mas o número de “macumbeiros” em Manaus é muito pequeno, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Será mesmo? Ou as pessoas ainda têm medo de se dizerem de axé para evitar serem vítimas de violências e estigmas? Ah, se os terreiros revelassem quem por eles passam! Tem, inclusive, aqueles que dizem publicamente que nossa religião é do demônio (que para nós, nem existe), mas adoram “um trabalho” que abra caminhos para que eles possam ocupar cargos de poder. E aqui fica um chamamento para meus irmãos repensarem com quem constroem “laços”.
Antes de escrever essas linhas, conversei com alguns mais velhos sobre mais uma vez não termos a oportunidade de vermos nossos artistas no palco de uma festa realizada com dinheiro público. Um deles foi o Pai Ronald ty Odé, que ressaltou a falta de termos gente nossa ou aliados nos espaços de poder.
“Não temos ninguém que olhe para a nação preta. Não temos um representante com voz para falar lá dentro da organização para trazer uma atração como ela (referindo-se à cantora Rita Benneditto e o seu tecnomacumba). É isso, não temos. E o Estado não é tão laico quanto diz ser.
(*) Luciana Santos é jornalista e advogada, mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Público, Direitos Humanos e Processo Civil, Africanidades e Cultura Afro-brasileira e possui MBA em Marketing e MBA em Gestão empresarial.
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