Em Cuba, referendo histórico decide sobre casamento homoafetivo

Cartazes a favor do novo Código da Família, que será votado em Cuba neste domingo, 25 (Yamil Lage/AFP)
Com informações do Infoglobo

CUBA – Quase seis décadas depois de os cubanos gays terem sido isolados da sociedade, um referendo sobre o novo Código da Família vai decidir, neste domingo, 25, um pacote legislativo que prevê, entre outras medidas, a aprovação do casamento homoafetivo e as adoções por casais LGBTQIAP+. É a primeira vez que os cidadãos da ilha serão consultados sobre os temas, mas ativistas e advogados ouvidos pelo GLOBO apontam contradições e vazios legais na consulta, que não tem caráter vinculante.

O novo código, de 100 páginas, reúne uma série de novos regulamentos sobre conduta familiar e apresenta propostas progressistas em temas além do casamento gay, como multiparentalidade, direitos das mulheres e a divisão igualitária dos trabalhos domésticos. Nesta semana, o Granma, jornal oficial do Partido Comunista de Cuba, publicou um artigo entusiasmado em que afirmava que a aprovação da lei é “um passo em direção a uma sociedade mais inclusiva, mais respeitosa, que não sanciona ou censura o amor” (…) e “costura as feridas de padrões que já não cabem mais em nossos tempos”.

Nas ruas, no entanto, os cubanos continuam bastante divididos e bem menos empolgados em relação à votação, afirma o historiador Manuel Costa Morúa, vice-presidente do Conselho para a Transição Democrática em Cuba.

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“O ambiente eleitoral é totalmente distinto ao do processo de referendo constitucional, em 2019, quando havia mais discussão e entusiasmo por parte da sociedade”, disse, em entrevista ao GLOBO. Na semana passada, uma caravana que apoiava o “sim” em Havana, convocada pelo governo, contou com uma participação muito baixa, pouco representativa. Além disso, não é permitido realizar mobilizações pelo “não”, como acontece em qualquer lugar democrático. Essa é uma das contradições do referendo: a pergunta é democrática, mas a participação cívica não.

O documento, aprovado em julho pela Assembleia Nacional do Poder Popular, foi submetido a consultas em assembleias populares entre janeiro e abril deste ano. Mais de 6 milhões de cubanos foram ouvidos e, segundo o governo, 61% se manifestaram favoráveis ao novo código.

A igreja Católica cubana que, normalizou sua relação com o governo, desde a visita do Papa João Paulo 2°, em 1998, é uma das principais opositoras do texto. A igreja alega que não se pode ignorar a parte significativa da sociedade que é contra ele. Há duas semanas, a Conferência dos Bispos Católicos de Cuba se manifestou contra a legislação que, segundo a entidade, pretende introduzir a “ideologia de gênero” na Constituição.

“À medida que o governo se viu obrigado a tolerar mais espaços democráticos, aflorou, no País, uma sociedade civil conservadora, um dos paradoxos da abertura da sociedade cubana”, diz Cuesta Morúa. — Todos esses grupos, sobretudo, um movimento crescente de evangélicos, são conservadores em temas como aborto e o casamento homoafetivo.

Gays foram perseguidos

O texto revisa várias leis de 1975, quando Fidel Castro estava no poder. Apenas em 2010, o líder cubano reconheceu a perseguição a gays na ilha — muitos deles presos logo após a revolução de 1959 e detidos em campos de trabalhos forçados.

O escritor cubano Antón Arrufat, que foi isolado na década de 1970 por ser gay — Foto: ADALBERTO ROQUE/AFP

O escritor cubano Antón Arrufat, que foi isolado na década de 1970 por ser gay (Adalberto Roque/AFP)

Em 1970, as autoridades cubanas estabeleceram que os parâmetros morais para um trabalhador confiável eram ser revolucionário e heterossexual. Caso contrário, o funcionário poderia ser “parametrizado”, sendo realocado para tarefas menores. Um deles foi o escritor Antón Arrufat, vencedor do Prêmio Nacional de Literatura do ano 2000.

Em entrevista à AFP, ele relembrou o período sombrio que marginalizou intelectuais homossexuais no País, no final dos anos 1960 e parte dos anos 1970.

“Fomos “‘parametrizados”. Essa é a palavra que foi usada — contou Arrufat, com 87 anos, que hoje apoia o referendo”. Nunca soubemos por que estávamos [sendo tratados] assim. Ninguém nos disse, “vocês cometeram um erro”. Nunca. Foi 14 anos enfiado em uma biblioteca municipal, onde trabalhava num porão.

Neste século, em um movimento que, no governo, foi liderado por Mariela Castro, filha de Raúl Castro (irmão e sucessor de Fidel) e diretora do Centro Nacional Cubano de Educação Sexual, o tratamento dado à comunidade LGBTQIAP+ mudou. As marchas do orgulho gay, por exemplo, passaram a ocorrer anualmente em Havana.

Agora, nas redes sociais, grupos religiosos vêm fazendo uma campanha ferrenha contra o código, pedindo para que os cubanos votem contra as mudanças ou se abstenham de participar. Para os especialistas, parte dessa rejeição se deve ao fato de as mudanças terem sido pouco discutidas pela sociedade civil. Ou seja, “mais que resultado de uma discussão nacional e social, o código parece uma imposição do Estado em relação à sociedade”, aponta Cuesta Morúa.

“Antes, o Estado dizia que não se podia ser homossexual e, agora, parece que, finalmente, está dando sua permissão”. O advogado cubano Alain Espinosa, da organização de direitos humanos Cubalex, concorda:

O referendo responde, basicamente, às necessidades do governo cubano de vender uma imagem de credibilidade à comunidade internacional.

Espinosa diz, ainda, que o novo código pode mascarar questões mais perigosas em relação à responsabilidade parental. Segundo o texto, pais e mães que não incutirem em seus filhos questões como “respeito à pátria e às autoridades”, por exemplo, podem perder sua guarda.

“A falta de definição pontual do que se entende por pátria e respeito às autoridades abre margem para uma aplicação da lei de maneira discriminatória contra os que mostrem uma oposição frontal ao governo”, disse ao GLOBO.

Há, ainda, a possibilidade de um voto relacional, como aconteceu recentemente no Chile, onde a rejeição de uma nova Constituição funcionou, na prática, como uma espécie de termômetro em relação ao governo de Gabriel Boric.

“O voto, nesse caso, seria não pelo código em si, mas a favor ou contra o governo. Nesse contexto, as crises econômica, social e, inclusive, familiar, graças ao êxodo maciço e dramático de muitos cubanos, vão influenciar o resultado”, diz o historiador cubano. — Se o “não” ganhar, seria uma mensagem de deslegitimação ainda maior do governo cubano. Mesmo assim, a não ser que haja uma abstenção maciça, que não possa ser mascarada, o governo fará de tudo que estiver a seu alcance para forjar o resultado a seu favor.

Mesmo em um improvável caso de derrota, a lei já foi publicada no Diário Oficial, no qual se detalha que a medida entra em vigor uma vez que o referendo aconteça, ou seja, independentemente de qual seja o resultado.

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