Em defesa dos povos indígenas, MPF pede suspensão do licenciamento ambiental de ferrovia no MT

O MPF também pede que nenhuma licença seja emitida até ser realizado o processo de consulta livre, prévia e informada do povo Boe Bororo (Reprodução)
Com informações da assessoria

MANAUS – O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma ação civil pública, com pedido de tutela de urgência, contra a empresa Rumo Malha Norte S/A, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Estado de Mato Grosso, para que seja suspenso o licenciamento ambiental da Ferrovia Rondonópolis (MT) – Lucas do Rio Verde (GO). O MPF também pede que nenhuma licença seja emitida pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema/MT) até que seja realizado o processo de consulta livre, prévia e informada do povo Boe Bororo, previsto na Convenção OIT N° 169. E, caso já tenha sido emitida a licença, que a mesma seja declarada nula.

O traçado da ferrovia está previsto para passar entre as terras indígenas Tereza Cristina e Tadarimana, ambas povoadas pelos indígenas da etnia Boe Bororo. Ocorre que, de acordo com o MPF, não foram realizados estudos específicos pertinentes aos impactos da obra sobre a população indígena, bem como a devida consulta prévia, livre e informada junto ao povo interessado, no caso, os indígenas.

A ACP baseia-se em informações levadas ao conhecimento do MPF, por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de que no entorno do empreendimento existem diversos sítios arqueológicos registrados e não registrados, com grande probabilidade de existência de sítios arqueológicos indígenas, especialmente, nas proximidades do município de Rondonópolis, na região da rodovia do Peixe. 

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A partir disso, o MPF entende que a participação dos indígenas é essencial no processo de licenciamento do empreendimento, pelo conhecimento que possuem sobre o patrimônio material e imaterial que precisa ser protegido e que está ameaçado com a execução do traçado previsto para a ferrovia. Além disso, foi verificado que a obra afetará, negativamente, as comunidades indígenas das TIs Tadarimana e Tereza Cristina.

A pedido das lideranças dos Boe Bororo, a Defensoria Pública da União (DPU) ingressou na ACP N° 1002227-67.2022.4.01.3602, o que torna os indígenas polo ativo no processo, ou seja, eles estão processando a empresa Rumo Malha Norte S.A, a Funai e o Estado de Mato Grosso. Em novembro de 2021, os indígenas reivindicaram o direito de serem ouvidos a respeito do empreendimento, sob a alegação de que parte das terras indígenas que foram demarcadas por Marechal Cândido Rondon teria sido vendidas ilegalmente e que, pela demarcação originária, a ferrovia cortaria a TI Tereza Cristina e também passaria pelo Pontal do Jorigi, parte da TI Tadarimana, tornando o projeto do traçado da obra mais próximo da área indígena, a menos que 10 quilômetros. 

Segundo a DPU, a demarcação atual das terras indígenas Tadarimana e Tereza Cristina é apenas uma parte do território que aquele povo ocupou por mais de 7 mil anos. “O Povo Boe Bororo não foi consultado para a construção da ferrovia, passando por suas terras ancestrais, o que fere não apenas os direitos ao consentimento livre, sério e informado, como causa grave dano espiritual, tendo em vista que diversos ancestrais estão enterrados no local, que sempre foi seu território desde o primeiro contato com os não indígenas”, argumenta o defensor regional de Direitos Humanos Renan Sotto-Mayor.

Para o procurador da República, titular da ACP, Rodrigo Pires de Almeida, a postura da Funai, da empresa Rumo e da Sema está “escorada apenas em parâmetros de norma federal inaplicável, cuja interpretação é inadmissível (Portaria Interministerial N° 60/2015) e ignora evidências que atraem o princípio da precaução, penalizando o bem jurídico ambiental por uma negligência atribuída, exclusivamente, aos demandados”. 

De acordo com o procurador, tanto a empresa quanto a Funai e o Estado de Mato Grosso estariam impedindo a participação popular, ou seja, dos indígenas, fazendo com que os povos tradicionais acabem por arcar com o ônus do empreendimento, que são os impactos negativos que a obra trará para o seu entorno. “Os demandados (…) pretendem levar a cabo, sem qualquer estudo de componente indígena, consulta aos indígenas interessados e avaliação das medidas mitigatórias e reparatórias”, ressaltou Almeida.

Além disso, o MPF ressalta a pressa “desmedida e o afobamento” para a aprovação do processo de Licenciamento da Ferrovia Rondonópolis – Lucas do Rio Verde, tanto da Sema quanto da empresa, uma vez que, mesmo estando pendente a análise do componente arqueológico do Iphan, para a concessão da licença prévia, a Rumo já havia pedido, em agosto de 2021, a licença para o órgão estadual.

Pedidos

Na ação, o MPF pede que, devido o empreendimento ter um potencial de causar significativo impacto negativo sobre os povos indígenas, a Funai espessa o Termo de Referência Específico e realiza a consulta livre, prévia e informada aos indígenas impactados pelo empreendimento. Já a empresa Rumo deverá realizar o estudo do componente indígena, concluir o estudo arqueológico e garantir a consulta livre, prévia e informada aos indígenas. 

Ainda conforme os pedidos da ação, o Estado de Mato Grosso não deve emitir qualquer licença sem realização de processo de consulta livre, prévia e informada, prevista na Convenção N° 169 da OIT, e deve analisar o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório correspondente fornecidos pela Rumo somente após a Funai e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) atestarem a viabilidade do empreendimento quanto aos componentes indígena e arqueológico.

Entenda o caso

A ação é o resultado de um inquérito instaurado a partir de uma representação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), feita à unidade do MPF em Rondonópolis (MT), noticiando a existência de diversos sítios arqueológicos próximos ao município e o risco de impactos irreversíveis do empreendimento para as comunidades das terras indígenas Tadarimana e Tereza Cristina.

Após o recebimento dos relatórios do Iphan e realização de perícias, o MPF fez uma recomendação com o mesmo teor da ação à empresa Rumo, à Funai e à Sema, mas todos se recusaram a atender, alegando que a consulta prévia, às comunidades, não preenche requisito legal e que estão seguindo a Portaria Interministerial 60/2015, que estipula uma distância mínima de 10km das terras indígenas para viabilidade do empreendimento.

Mas, para o MPF, a Portaria Interministerial 60/2015 é inconstitucional e a expedição de licença sem consulta prévia aos indígenas impactados contraria normas internacionais como a Convenção 169 da OIT e normas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Além disso, a distância mínima do empreendimento precisa ser definida de forma individual e as características peculiares desse caso precisam ser observadas para evitar um dano irreparável aos povos da região.

A ferrovia e os povos indígenas

Uma dessas características é o fato de o licenciamento da ferrovia ter sido fracionado por trechos, o que prejudica uma visão global do empreendimento e dos impactos do seu conjunto, composto por, aproximadamente, 1.500km que interligam áreas produtivas de Mato Grosso do Sul, Goiás e Mato Grosso a uma extensa rede ferroviária que atravessa o Estado de São Paulo por, aproximadamente, 900km até o Porto de Santos, no litoral Paulista.

Outro detalhe é a existência de efeitos que podem se acumular e se associar aos impactos da instalação do Terminal Intermodal Rodoferroviário de Rondonópolis, inaugurado em setembro de 2013.

O procurador sustenta também que é imprescindível seguir o princípio da precaução e, neste caso, avaliar mais que uma distância mínima do empreendimento. Para ele, o intenso intercâmbio cultural, social, religioso, político, ancestral e econômico dos Boe Bororo, das terras Tadarimana e Tereza Cristina, que serão separadas pela ferrovia, devem ser protegidos, assim como preveem as normas, e os impactos negativos do empreendimento, quando aceitos, devem ser compensados.

O povo Bororo, hoje, detém seis terras demarcadas em Mato Grosso, num território descontínuo e descaracterizado, que corresponde a uma área 300 vezes menor que o território tradicional de origem.

Leia o documento na íntegra:

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