Fome e descaso: problemas no Vale do Javari vão além da falta de segurança

Vale do Javari (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)
Ívina Garcia – Da Revista Cenarium

ATALAIA DO NORTE (AM) – Vivendo com menos que o mínimo, indígenas do Vale do Javari, em Atalaia do Norte, distante 1.136 quilômetros de Manaus, relatam abandono, falta de demarcação, insegurança e falta de diálogo com os governos estadual e federal. A equipe de reportagem da REVISTA CENARIUM esteve no município entre os dias 26 e 28 de fevereiro para acompanhar a visita de uma comitiva do governo federal e ouviu relatos de moradores do local.

Todos os dias, no porto de Atalaia do Norte, famílias de indígenas chegam em barcos cercados por palha e lona, na esperança de conseguir sacar os auxílios federais e estaduais, único meio de sobrevivência de alguns indígenas.

Estruturas flutuantes e barcos abrigam famílias indígenas nas margens do Porto de Atalaia do Norte (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Dionísio Kulyna, que está há quatro meses atracado no porto, disse ter viajado cinco dias pelo Rio Solimões com a família até Atalaia do Norte. Todos os dias, ele e outros chefes de família vão até Tabatinga checar se já podem sacar o auxílio. “Hoje, fui lá e estava sem sistema, então amanhã vou tentar ir de novo para ver se já posso sacar. Enquanto isso, a gente continua aqui“, diz o Kulyna.

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Abrigados ao lado da Unidade Básica de Saúde Fluvial (UBSF) de Atalaia do Norte, Dionísio passou os últimos 150 dias com outros seis membros da família em redes atadas, em uma embarcação sem portas, paredes ou privacidade. Além deles, outros indígenas estão no local desde o ano passado, tomando banho ao ar livre, comendo pescado e sobrevivendo de doações.

Jovens da etnia Kulyna aguardam os chefes da família retornarem de Tabatinga (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Dionísio é apenas um dos homens que a reportagem encontrou enquanto esteve na estrutura flutuante, ocupada na maioria por mulheres e crianças, que se dividem nos afazeres, preparando carne de caça, peixes e verduras compradas na feira de Atalaia. Redes se estendem ao longo das duas construções de madeira que flutuam no Rio Solimões.

Mulheres preparam comida enquanto aguardam retorno dos maridos, tios e pais (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Conforme o secretário municipal de assuntos indígenas de Atalaia do Norte, Jaime Mayoruna, o estado de insegurança alimentar e falta de assistência é uma realidade no porto da cidade. Ele conta que desde que assumiu a secretaria do município tem tentado amenizar a situação.

Isso aqui ninguém conta, mas nós temos parentes que ficam dias aqui com fome, e muitas vezes ajudamos com o que podemos fazer, eu venho de manhã e distribuo pão, às vezes, ajudamos com o gás ou arroz, mas não é todo dia que podemos“, relata o secretário.

Base da Funai às margens do Porto de Atalaia do Norte foi desativada pela Defesa Civil do município (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Às margens do porto ficava a sede da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que foi desativada pela Defesa Civil do município por estar na área onde um barranco cedeu. No local, uma bomba d’água é disponibilizada para os indígenas.

A gente estava tendo muito relato de diarreia e dos parentes ficando com doenças e passando mal, então entrei em contato com prefeito Denis, para colocar essa bomba d’água, foi o que melhorou“, relata.

O diretor-presidente da Fundação Estadual do Índio (FEI), Sinesio Tikuna Trovão, relatou à reportagem que tem tentado diálogo com o governo estadual desde que assumiu a presidência da fundação, no fim de dezembro do ano passado.

Diretor-presidente da Fundação Estadual do Índio (FEI), Sinesio Tikuna Trovão (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

“Até esse momento o governo do Estado não atendeu a agenda da população indígena, as duas maiores associações indígenas tentaram três vezes marcar encontro. Por esse motivo, está tendo manifestações em Manaus. Eles me convocaram para vir aqui conversar”, relata.

Nós queremos contribuir com a política indígena, porque queremos por meio dessas organizações de base, Alto Rio Negro, Alto Solimões, Vale do Javari, alinhar as demandas. Esse é o nosso pensamento agora”, afirma o diretor-presidente.

Porto de Atalaia do Norte (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

A fala de Trovão corrobora com o discurso dado pela atual presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, durante a reunião de lideranças no Vale do Javari na segunda-feira, 27. Wapichana destacou que a presença de indígenas em cargos de poder dá início à política indígena e não mais indigenista.

“Hoje, passaremos a fazer política indígena e não mais indigenista, porque, hoje, temos indígenas no ministério, na secretaria de Saúde, na Funai e no Congresso, então, hoje, a política é feita por nós indígenas e não mais pelos não indígenas”, enfatizou a presidente da Funai.

Representantes

Uma comitiva composta por secretários de pastas estratégicas representaram o governador do Amazonas, Wilson Lima, na ação organizada pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), que recebeu também ministros e secretários do governo federal.

Entre os agentes estaduais que participaram da reunião estão: o secretário de Estado de Segurança Pública (SSP-AM), general Carlos Alberto Mansur, a secretária de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejusc), Jussara Pedrosa, e o atual diretor-presidente da Fundação Estadual do Índio (FEI), Vandelerlei Alvino.

O comandante-geral da Polícia Militar do Amazonas (PM-AM), coronel Marcus Vinícius Oliveira, também esteve na comitiva. E representantes da Secretaria de Estado de Governo (Segov) e da Casa Militar completaram a equipe.

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