Legislação e meio ambiente em prática e vivência da Amazônia

Moradores no Rio Lage, que teve os direitos reconhecidos em lei (Hely Chateaubriand/Comvida)
Por Luciana Santos – Especial para Revista Cenarium**

Na última semana, duas notícias sobre projetos de leis aqui da Região Norte me chamaram atenção: o PL que reconhece o Rio Laje, em Rondônia, como um ser vivo e sujeito de direito e o que prevê a criação e oferta de cursos sobre noções básicas de sobrevivência para estudantes da rede pública estadual de ensino. O primeiro foi aprovado pela Câmara Municipal de Guajará-Mirim e o segundo encontra-se ainda em tramitação na Assembleia Legislativa do Amazonas (Aleam).

A informação sobre as duas matérias legislativas chegou a mim no mesmo momento em que lia “A Terra dá, a Terra quer”, mais recente obra do mestre quilombola Antônio Bispo dos Santos, mais conhecido como Nêgo Bispo. Na obra, o intelectual nos chama atenção, a partir de conhecimentos ancestrais, para os efeitos do colonialismo na relação do homem com a terra e sobre os desafios enfrentados pelos povos tradicionais para manter sua cultura e modo de vida em meio a esse sistema que tem como base o capitalismo. Minha reação foi instantaneamente começar a refletir sobre os projetos de lei supracitados a partir dos conceitos e da proposta contracolonial apresentados por Nego Bispo. E, veja, não é uma análise sobre a legalidade ou aspectos formais das propostas, mas sobre o porquê de elas serem tidas como importantes a ponto de serem apresentadas, sobre as nossas falhas no cuidado e relação com nossa casa maior.

Em “A Terra dá, a Terra quer”, o mestre e líder quilombola nascido na Comunidade Saco Curtume, localizada no município de São João do Piauí (PI), nos fala que “o desenvolvimento e o colonialismo chegam subjugando, atacando, destruindo”; que a humanidade (os humanos colonizados) estão cada vez mais afastados da relação com a natureza, pois não se reconhecem como parte dela e fazem questão de, nas cidades, excluírem a possibilidade de contato com qualquer outro tipo de vida. Ele nos traz o conceito de cosmofobia e diz que este é responsável “por esse sistema cruel de armazenamento, de desconexão, de expropriação e de extração desnecessária”. Nego Bispo fala ainda sobre a importância da vida em comunidade, dos compartilhamentos e das confluências de saberes.

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O fato de precisarmos de uma lei para tornar um rio em sujeito de direito, para que ele se mantenha vivo, e as comunidades que dele dependem também, é prova de que há algo de muito errado na nossa relação com a natureza. O PL do Rio Laje é o primeiro aprovado com esse teor, no Brasil, e é significativo o fato de ter sido proposto por alguém que pertence aos povos tradicionais, que sabe que sua existência e de sua comunidade está interconectada à natureza: o vereador Francisco Oro Waram (PSB) é uma liderança da aldeia Waram, que é banhada pelo corpo d’água.

Na América Latina temos como paradigmático o reconhecimento do Rio Atrato, na Colômbia, que vinha sendo vítima da mineração. A atividade predatória desencadeou a contaminação da água e dos peixes com mercúrio, o desmatamento, o assoreamento e o adoecimento das populações ribeirinhas (majoritariamente negras, o que indica a existência do racismo ambiental). Infelizmente, os rios brasileiros  também já estão contaminados por produtos tóxicos, levando a população a ingerir peixes com alto grau de contaminação por mercúrio, como revelou pesquisa recente amplamente divulgada pelos meios de comunicação. Sim, essa é a fatura da desconexão com o meio ambiente, do “desenvolvimento” a qualquer custo.

Precisar oferecer aulas de sobrevivência aos jovens para que estes saibam lidar com a natureza em situações de acidentes também demonstra que em algum momento nos distanciamos dos conhecimentos ancestrais e da própria vivência como seres orgânicos. Moramos na maior floresta equatorial do mundo e, simplesmente, viramos as costas para ela, ignoramos nosso modo de vida para tentar nos encaixar em algo bem distante da nossa realidade. Na matéria em que li sobre o projeto em tramitação, o autor citava o caso das crianças Witoto que passaram mais de um mês perdidas na floresta colombiana após um acidente de avião. O relevante nesse caso é que elas só sobreviveram porque colocaram em prática os conhecimentos aprendidos com seus mais velhos, no convívio com sua comunidade e com a floresta. Elas sabiam ler e ouvir os sinais da natureza, conhecimentos que ninguém aprende em sala de aula. Talvez isso pudesse ocorrer se tivéssemos um outro modelo de educação.

Mas como resgatar nossa conexão com a natureza, mesmo imersos nesse sistema moldado pelo colonialismo? Segundo Nego Bispo, “o contracolonialismo é simples: é você querer me colonizar e eu não aceitar que você me colonize, é eu me defender”. Ou seja, é um exercício consciente e constante. Isso, no entanto, como o escritor explica, não significa a defesa do fim do “humanismo”, mas a proposta de uma convivência respeitosa de fronteira entre os dois modos de vida.

“Pode ser que, no futuro, como a fronteira é um território movediço, elástico, a gente avance quando eles recuarem, ou pode ser que a gente recue quando eles avançarem, mas sem chegar ao limite. Nós pensamos sempre na circularidade, quebrando o monismo, a dualidade e o binarismo”, explica.

(*) Luciana Santos é jornalista e advogada, mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Público, Direitos Humanos e em Processo Civil, Africanidades e Cultura Afro-brasileira e possui MBA em Marketing e MBA em Gestão empresarial.
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.
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