Meio milhão de ribeirinhos sofrem com fome após enchente histórica de rios no Amazonas

Os ribeirinhos estão desnorteados e afirmam que nunca viram tantas cheias gigantescas consecutivas como nos últimos 12 anos (Bruno Kelly/Reuteres)

Com informações do O Globo

MANAUS – Isolados em meio à maior enchente em mais de um século, cerca de 520 mil ribeirinhos, famílias que vivem às margens dos rios Negro e Solimões, sofrem com a fome, a destruição da fonte de subsistência e o impacto ambiental que afeta de forma cada vez mais devastadora o clima.

São pelo menos meio milhão de brasileiros que vivem em comunidades isoladas na Amazônia e agora dependem da Defesa Civil e da mobilização de organizações sociais não governamentais. Estas distribuem cestas básicas e “kits Covid-19” (álcool gel a 70%, sabonetes, máscaras, desinfetantes, água sanitária, detergentes e baldes). Alívio, mesmo, só quando as águas baixarem, a partir de julho e agosto.

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Em maio, o Rio Solimões, que a partir de Manaus passa a ser chamado de Amazonas, começou a subir, chegando a 20,83 metros, 17. E o Negro, que banha a capital amazonense, outros 30,02 metros, 16. Foram as maiores altas dos últimos 119 anos (Negro) e 49 anos (Solimões), segundo o Serviço Geológico do Brasil (SGB-CPRM). Famílias que vivem em Santa Luzia, na Ilha do Baixio, e na Ilha da Marchetaria, em Iranduba, ficaram totalmente isoladas.

Para sair de casa, Adriely Nice Ferreira e Adelia Nice Ferreira, que vivem na comunidade Renascer, em Iranduba, contam com a ajuda de Carlos Viana de Carvalho para sair de casa (Euzivaldo Queiroz/Agência O Globo)

Os ribeirinhos estão desnorteados e afirmam que nunca viram tantas cheias gigantescas consecutivas como nos últimos 12 anos. Os que vivem às margens dos rios amazônicos sofrem duplamente com as águas que invadiram suas produções e casas e a explosão da Covid-19, que no Amazonas matou mais de 13,3 mil pessoas. Toda bacia hidrográfica da Amazônia foi impactada.

“Não sei de onde vem tanta água. Tudo mudou no clima e (pelo jeito) vamos continuar vivendo aqui com a água invadindo nossas casas e levando nossa produção”, diz Adélia Ferreira, de 56 anos, líder da comunidade Novo Renascer, na Ilha da Marchetaria, em Iranduba, na região metropolitana de Manaus, que foi totalmente alagada.

Mudanças climáticas e devastação da floresta

Os especialistas explicam que o efeito de esfriamento das águas do Oceano Pacífico, o La Niña, é um dos principais responsáveis pelo excesso de chuvas na maior região de florestas tropicais do planeta. Segundo o presidente da CPRM do Amazonas, o geólogo Marcelo Batista Motta, os efeitos provocados pelo desmatamento e queimadas na região Amazônica também contribuem para as enchentes recordes, pois, sem o efeito de retenção das águas, causado pela floresta, os rios se expandem.

Professora ribeirinha da Escola Municipal São Lázaro I, Andrielly Ferreira, 28 anos, diz que, além das águas, desta vez “a enchente trouxe também a Covid-19”. “Fiquei doente três vezes, em junho de 2020, e duas vezes neste ano. Peguei pneumonia e fiquei com 45% dos pulmões comprometidos. Não sei como não morri, mas superei. A gente se cuida, mas o vírus não dá folga. Aqui na nossa comunidade, muita gente pegou”, contou.

Quem também não sabe mais como prever o nível dos rios, especificamente o do Solimões no município de Manacapuru, é o “fazendeiro das águas” Raimundo Fleury, de 63 anos. Ele construiu marombas sobre as águas nas proximidades de sua casa e do barco, com o objetivo de proteger seu rebanho, que perdeu terra firme e pastos.

Ajuda que vem de fora: ONG e missionários americanos

Na semana passada, em uma rara manhã de sol forte nos dias chuvosos do inverno amazônico, os ribeirinhos de Santa Luzia, que está totalmente alagada, foram chegando em suas canoas e pequenos barcos para participar de uma reunião comunitária na igreja em construção. Lá, foram tratados temas importantes para a comunidade, como o retorno às aulas na escola sob as águas, o que seria feito das plantações e da estrada que serve para escoar a produção da comunidade e que sumiu sob o leito do rio Solimões.

A secretária administrativa da Escola Municipal Santa Luzia, Maria Eliana Salgado, de 47 anos, disse que os 72 alunos estão em casa, estudando com apostilas preparadas semanalmente pelos professores, para que eles possam acompanhar os estudos. Nem todos tem acesso à internet na região.

“A gente faz o que pode, porque está tudo debaixo d’água, ainda bem que tem gente que se preocupa conosco”, disse, se referindo à ONG Raio de Esperança, que distribuiu mais de 200 cestas básicas na comunidade.

A presidente da ONG, Glória Reynolds, informa que a distribuição faz parte de um programa de solidariedade em apoio aos ribeirinhos. “Nós distribuímos mais de 2.500 cestas básicas e kits (de higiene contra a) Covid-19 em oito municípios atingidos pela cheia (Manaus, Iranduba, Manacapuru, Autazes, Novo Airão, Manaquiri, Barreirinha e Careiro Castanho)”, conta.

Um jovem casal de missionários americanos também participa das ações de solidariedade aos ribeirinhos. Nate e Roxanna Miller são de Kansas City, no Estado do Missouri, e atuam na região há mais de dez anos. Segundo ela, “esta é uma forma de fazer chegar ajuda material e espiritual a quem precisa nas áreas isoladas da Amazônia. Os EUA também foram afetados pela Covid-19, mas aqui é diferente, porque as pessoas passam mais necessidades na floresta”.

Governo estadual distribui ‘cartões enchentes’

A Defesa Civil do Amazonas realiza, em parceria com outras nove secretarias do governo, o trabalho de assistência aos ribeirinhos. Segundo o secretário estadual Francisco Máximo Filho, foram distribuídos 70 mil Cartões Enchentes, no valor de R$ 300, cada um, de um total de 125 mil, que até o dia 20 de agosto deverão ser entregues às famílias afetadas em um investimento de R$ 37,5 milhões.

Duzentas famílias do Baixio de Iranduba começaram a receber os cartões no dia primeiro de julho, em um momento em que as águas ainda cobrem toda região. “Esta ajuda nos permitirá comprar alimentos e ‘segurar’ até agosto, quando as águas começam a baixar mais rapidamente”, disse o líder comunitário Aldecir Lima da Silva, o Deca.

Três estações móveis de tratamento de água potável foram construídas sobre balsas pois, por conta da enchente, os ribeirinhos não dispunham de água tratada em Boca do Acre, Envira e Anamã. Mais de 300 filtros purificadores de água também foram acionados dentro do projeto Água Limpa, para abastecer às comunidades ribeirinhas atingidas.

O governo estadual também está entregando 35 mil cestas básicas e liberou R$ 3,5 milhões para compra de farelo de soja e sal mineral e R$ 5 milhões para aquisição de sementes e mudas, que serão entregues aos produtores rurais afetados pela enchente, a partir de agosto.

O secretário da Casa Militar de Manaus e coordenador do Comitê de Enfrentamento à Cheia dos rios Negro/Amazonas da capital, William Dias, disse que a cheia do rio Negro afetou 5 mil famílias na capital, o equivalente a 20 mil pessoas. Foram construídos mais de 13,3 mil metros de pontes de madeira em 21 bairros, para permitir o acesso da população às áreas alagadas, dentre elas o centro histórico da cidade na região portuária, onde fica a antiga alfândega, totalmente alagada.

Foram gastos R$ 2 milhões com auxílio-aluguel às famílias atingidas, R$ 4 milhões em pontes e R$ 3 milhões com o cartão-cheia, este último em parceria com o governo estadual. A prefeitura também construiu uma feira flutuante na Manaus Moderna para 220 feirantes e distribuiu cerca de 5 mil cestas básicas. Os gastos totais do município no combate à cheia histórica chegam a R$ 20 milhões.

Já o governo federal repassou outros R$ 30 milhões, via Secretaria Nacional da Defesa Civil do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) para 28 municípios. O valor, no entanto, foi considerado pelos especialistas da área da defesa civil muito abaixo do necessário, em função da magnitude da enchente.

“O governo federal não fez nenhum repasse à capital amazonense na maior cheia da História do rio Negro, e depois que fomos a Brasília solicitar auxílio, sinalizou que faria repasses na vazante, mas não definiu o valor”, diz William Dias.

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