Ministério da Justiça usa ‘dolo eventual’ para justificar investigação sobre genocídio dos Yanomami

Imagem de 'Genocídio do Yanomami: morte do Brasil', de Claudia Andujar (Galeria Vermelho/Divulgação)
Da Revista Cenarium*

MANAUS – O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, determinou a abertura de inquérito policial para apurar o genocídio do povo Yanomami, em Roraima, numa decisão que se baseia tanto na lei brasileira como na legislação internacional. O procedimento foi instaurado pela Polícia Federal.

Cunhado pelo advogado polonês Raphael Lemkin (1900-1959), o conceito de genocídio apareceu pela primeira vez no livro “Axis Rule in Occupied Europe” (o governo do eixo na Europa ocupada), publicado em 1944.

(Uhiri/Associação Indígena)

A noção, que junta “geno” (do grego: raça, classe) com “cidio” (do latim: matar), se aplicava à política de assassinatos em massa implementada por Adolf Hitler na Alemanha, mas Lemkin já pensava no assunto antes disso, quando procurava um nome para os crimes cometidos no massacre do povo armênio (1915-1923).

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Não demorou para o novo conceito ganhar status legal. Em 1948, a recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Convenção para Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, definido em duas partes.

Uma delas é a “intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal”. A outra parte lista cinco condutas que, se praticadas com essa intenção, configuram o crime de genocídio. São elas:

  • a) matar membros do grupo;
  • b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
  • c) submeter, intencionalmente, o grupo à condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
  • d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo;
  • e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

A convenção da ONU passou a valer, no Brasil, em 1952 e, quatro anos depois, o então presidente Juscelino Kubitschek sancionou a lei 2.889/1956, que define e pune o crime de genocídio.

A lei brasileira repete os termos das Nações Unidas e acrescenta algumas regras específicas, como as penas aplicáveis: a mínima não fica abaixo de dois anos de prisão (nos casos de lesão grave ou transferência forçada) e a máxima pode chegar a 30 anos (no caso de morte).

Sua primeira e única aplicação, no Brasil, ocorreu em relação a um crime de 1993, justamente contra Yanomami. O episódio, conhecido como massacre do Haximu, deixou 12 indígenas mortos na serra da Parima, região de Roraima próxima à fronteira da Venezuela.

Aos dois textos legais de meados do século passado se somou um terceiro, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI), finalizado em 1998 e em vigor, no Brasil, desde 2002.

Essa norma apenas reforçou a antiga definição, mas uma assembleia dos países-membros do Estatuto de Roma esclareceu um ponto: qualquer uma das cinco condutas do crime de genocídio precisa fazer parte de um padrão de ações contra um determinado grupo nacional, étnico, racial ou religioso.

Ou seja, não basta uma ação isolada para configurar o genocídio – a menos, é claro, que dessa ação isolada já resulte a destruição total ou parcial do grupo em questão.

A necessidade de apontar um padrão dificulta a vida da acusação. Por outro lado, esse padrão, na maioria das vezes, acaba sendo a única maneira de demonstrar a intenção do genocida. Afinal, o criminoso evitará deixar um documento ou dar declarações atestando sua intenção de provocar extermínio.

“Em qualquer crime, descobre-se a intenção a partir de uma série de circunstâncias que cercam o ato criminoso. Não é diferente no genocídio. O que se busca é descobrir se há algum padrão que evidencie a intenção de eliminar um povo”, afirma a advogada Deborah Duprat, subprocuradora da República aposentada.

Para Eloísa Machado, que é professora de direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), uma das características que ajudam a identificar o genocídio é a mobilização da máquina estatal.

“Caso se comprove que o Estado criou uma política para destruir um povo, aí temos o genocídio”, diz Machado, da Comissão Arns e do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu).

De acordo com ela, essa política pode passar pelo esvaziamento de órgãos de proteção, pela leniência com criminosos que ataquem um dado povo e pela ausência de assistência devida.

Segundo Fábio Tofic Simantob, advogado criminalista, se o governo tem o dever de agir e deixa de fazê-lo, mesmo após ter sido alertado sobre a situação, há uma violação.

“Começa a se aproximar da figura do dolo [intenção] ou do dolo eventual, que é aquele em que pode não haver intenção direta de obter o resultado, mas se assume o risco com uma ação ou omissão”, afirma.

Em nota, o Ministério da Justiça usa a figura do dolo eventual para justificar a investigação sobre o genocídio do povo Yanomami, destacando “os indícios de negativa de assistência nutricional e de saúde dessas populações indígenas”.

A pasta também se refere a três condutas previstas nas leis sobre genocídio: assassinatos, violação da integridade física ou da integridade mental e “negação de procedimentos que são fundamentais para a sustentação da vida desse povo”.

De acordo com Duprat, esse último ponto, que corresponde à letra “c” da lei, trata não só da sobrevivência física. “É também a sobrevivência do povo enquanto diferenciado da sociedade de grande formato”, diz ela.

*Com informações da Folhapress
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