Moradores do Acre vivem drama causado pelas chuvas: ‘Perdi tudo’

Em Rio Branco, inundações atingiram mais de 50 bairros e pelo menos cem mil pessoas (Tião Maia/Especial para Revista Cenarium)
Tião Maia – Especial para Revista Cenarium

RIO BRANCO (AC) – Moradora da Rua Beira Rio, nas proximidades do parque urbano Horto Florestal, frequentado pela elite de Rio Branco, a capital do Acre, a cabeleireira Raimunda Castro Martins, a “Ray”, de 50 anos, jamais imaginou que um dia viveria a condição de desabrigada. A cabeleireira, que também é mãe solteira de três filhos, perdeu portas e janelas, além de móveis como camas, mesas, guarda-roupa e sofás. “Eu perdi tudo, todas as minhas coisas, salvei só a geladeira. Mas até a feira, que estava num armário, desceu na água. No quintal, encontrei galinhas mortas, até meu gato sumiu”, contou ela.

A residência da cabeleireira, que se orgulha do próprio endereço e da vizinhança cheirando a nobreza, está distante pelo menos 5 quilômetros (km) do Rio Acre, que corta a capital e que nos últimos dias vem literalmente banhando a maior cidade acreana. Agora, ela sente na pele a razão de sua rua, apesar da distância, se chamar Beira Rio

Dona Ray perdeu todos os móveis (Tião Maia/Especial para Revista Cenarium)

Ray, assim como outros moradores do bairro do Horto, que inclui o conjunto Procon, com duas mansões numa das áreas mais nobres de Rio Branco, de uma hora para outra, viraram desabrigados, incluindo o senador da República Sérgio Petecão (PSD-AC) e a esposa, Marfisa Galvão, que também é vice-prefeita de Rio Branco. O casal é proprietário da mansão que politicamente chamam – evocando a Casa Branca nos Estados Unidos, onde mora e trabalha o presidente do país – de a “Casa Amarela“.

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Nas imediações da casa da cabeleireira Ray e do senador Petecão, passa desaguando no Horto Florestal, o Igarapé São Francisco. Com as chuvas que castigam a Amazônia nos últimos dias, incluindo as capitais Manaus e Rio Branco, nos Estados mais atingidos pelas cheias na região, o outrora inocente igarapé se transforma numa ameaça por causa dos repiquetes, como a população local costuma chamar as trombas d’água que não poupam ninguém.

Defesa Civil interditou a ponte sobre o Rio Acre (Reprodução/Sergio Valle)

Interdição

O aguaceiro em Rio Branco é tanto que a Defesa Civil, por precaução, proibiu, na madrugada desta terça-feira, 28, o tráfego de veículos e pedestres pela ponte metálica, que há 60 anos une os dois distritos da capital acreana. No interior, outra ponte sobre o Rio Acre, ligando as cidades de Brasiléia e Epitaciolândia, também foi fechada. O motivo do fechamento são os troncos de árvores e balseiros trazidos pela correnteza que se acumulam nas pilastras da ponte e, com a correnteza, ameaçam a estrutura.

Em Brasiléia, assim como o senador Sérgio Petecão, em Rio Branco, a prefeita Fernanda Hassem, eleita pelo PT, mas expulsa do partido, em 2022, por apoiar a reeleição do governador Gladson Cameli, do PP, também ficou desabrigada. Enquanto ajudava os munícipes a salvarem seus móveis, ela esqueceu de cuidar da própria casa e ficou na rua.

Prefeita de Brasiléia teve a casa inundada (Divulgação/assessoria)

Igarapé São Francisco

Em Rio Branco, aquele que parece um igarapé inocente com o nome do santo padroeiro dos animais, segundo a Igreja Católica, que agora se transformou numa ameaça pública na capital acreana a cada enxurrada, já foi um manancial piscoso que era referência de alimento e área de lazer para boa parte da população da capital dos acreanos. O igarapé corta a cidade numa extensão estimada por estudos geográficos de 12 km.

Até a década de 1970, o igarapé não oferecia risco a ninguém. Mas, a partir da explosão demográfica, com o êxodo dos seringais para as áreas urbanas, territórios alagadiços nas margens do São Francisco e de outros córregos que deságuam no Rio Acre, viraram um problema de saúde pública capaz de afetar até mesmo a incipiente economia local.

Igarapé corta a cidade numa extensão estimada por estudos geográficos de 12 quilômetros (Tião Maia/Especial para Revista Cenarium)

Economia afetada

A estimativa da Prefeitura Municipal de Rio Branco é que as cheias do Rio Acre, causada por afluentes do rio desde as suas cabeceiras, que nascem das montanhas e na selva no Peru e que se juntam a mananciais como o São Francisco, a cada ano, como ocorre agora, causem prejuízos à economia local que podem superar mais de R$ 200 milhões.

“Quando isso acontece, para tudo. A economia não gira. Escolas viram abrigos e não têm aulas. Casas comerciais têm que fechar porque ficam sem ruas de acesso e a indústria, mesmo a da construção civil, tem que parar atividades porque os operários não podem ir trabalhar, porque estão em suas casas tentando salvar o pouco que tem”, disse o presidente da Federação das Indústrias do Acre (Fieac), José Adriano. “Todos sofremos”, definiu.

Leia também: Inmet prevê chuvas intensas no Acre; Mais de mil pessoas estão desabrigadas

Os problemas de enchentes no Acre remontam aos tempos de sua fundação do próprio Estado, que não se intensificaram com a explosão demográfica que transformou o São Francisco e outros igarapés em depositários de lixo com restos de sofás, de geladeiras, colchões, vasos sanitários, pneus e outros bem inservíveis de difícil decomposição na natureza. Isso tudo começa a atingir também municípios do interior, como Xapuri, Epitaciolândia, Brasiléia e Assis Brasil, todos da região do Alto Acre, na última fronteira do continente sul-americano do Brasil, como Peru, localizados nos Andes.

Nesta época do ano, as águas derretidas das geleiras dos Andes, mais as chuvas sobre a mais densa floresta tropical do mundo, transbordam e suas populações, inclusive as tradicionais, como os indígenas isolados que jamais tiveram contatos com a civilização, vivem os mesmos problemas da capital. Na outra ponta do Acre, no Vale do Juruá, na fronteira apenas com o Peru, onde fica a Serra do Divisor e um dos maiores parques ecológicos da Amazônia, no qual foi registrada o maior índice de biodiversidade dos reinos vegetal e animal do planeta, apesar das belezas naturais, também surgem os mesmos problemas.

Moradores perderam móveis (Tião Maia/Especial para Revista Cenarium)

Os pés da montanha que divide a selva amazônica dos Andes peruano, municípios como Tarauacá, Feijó, Cruzeiro do Sul e Mâncio Lima vivem o drama de quem perdeu tudo na capital, como a cabeleireira Ray Martins. Isso faz com que o Acre, um Estado com 153 mil quilômetros quadrados (km²), maior que Portugal e correspondente a duas Áustrias, na Europa, se transforme num Estado de desabrigados.

Com a população estimada em menos de 1 milhão de habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 10% da população, próximas a 200 mil pessoas, 100 mil delas só em Rio Branco, de acordo com dados da prefeitura local, estão atingidas pelas inundações. Na capital Rio Branco, até esta terça-feira, 28, os números contabilizados apontavam para 50 bairros atingidos, com mais de cem mil pessoas desabrigadas.

“Os desabrigados de agora, que perderam tudo o que tinham, são os mesmos que vinham se recuperando de enchentes anteriores e que agora são vítimas de novo”, disse o prefeito de Rio Branco, Sebastião Bocalom, um paranaense de Nova Olímpia de 65 anos. Apesar da idade, nos últimos dias, Bocalom tem sido visto nas áreas alagadas carregando sacolões de comida e material de limpeza para socorrer as vítimas. “A gente faz isso, mas a sensação é de que estamos enxugando gelo”, disse.

Prefeito de Rio Branco carregando alimentos para as famílias desabrigadas (Tião Maia/Especial para Revista Cenarium)

Visita

A declaração do prefeito foi feita em Rio Branco diante de alguém que conhece bem os problemas desta natureza: Marina Silva e Waldez Góes, ministros, respectivamente, de Meio Ambiente, Mudanças Climáticas e da Integração Regional. Ela, nascida num seringal de nome Bagaço, nos arredores de Rio Branco, ex-vereadora, deputada estadual e senadora por dois mandatos e três vezes candidata à Presidência da República, e ele governador do Amapá por três vezes.

Os dois chegaram a Rio Branco no último domingo, 26, como enviados do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para buscarem soluções para os problemas e oferecerem solidariedade e ajuda do governo federal. Os ministros, acompanhados do prefeito Tião Bocalom e do governador do Estado, Gladson Cameli, visitaram abrigos na capital e sobrevoaram de helicóptero as áreas alagadas.

Ministros visitaram a capital do Acre no domingo, 26 (Reprodução/Juan Diaz)

Reconstrução

Gladson Cameli disse que iria pedir aos ministros liberação de recursos para a construção de novas casas populares e de reconstrução de casas atingidas pelas inundações. A ministra Marina Silva, apontada por publicações internacionais como uma das pessoas mais influentes do planeta Terra quando o assunto é problemas ambientais, que fez carreira política a partir da relação com o ambientalista Chico Mendes, assassinado em Xapuri, em 1988, sabe bem o que a cabeleireira Ray e outros desabrigados estão vivendo.

Segundo ela, já senadora da República, em 1997, teve que vir a Rio Branco em socorro à família, que morava no Bairro Cidade Nova, para ajudar a tirar seu pai, seu Pedro (já falecido), que se recusava a abandonar a palafita em que vivia apesar da ameaça das águas, como agora, de inundar tudo e afogar todo mundo. “Já naquela época, tive que convencer meu pai de que tudo estava mudando e que as inundações não seriam como as outra e que só iria piorar. Infelizmente, eu estava certa“, disse a ministra.

Ministra Marina Silva (Reprodução/Juan Diaz)

É por sua condição de acreana e de ex-flagelada que Marina Silva, por seus prestígios nacional e internacional, pode ser a pedra chave para resolver o problema das inundações no Acre, a partir do Igarapé São Francisco e do rio que batiza o Estado brasileiro, que um dia foi território da Bolívia e que foi tomado numa guerra sangrenta de seringueiros comandados pelo gaúcho José Plácido de Castro, na belicosa Revolução Acreana, na qual os brasileiros lutaram e venceram o Exército regular da Bolívia, na época comandado pelo presidente boliviano Manuel Pando.

Consta que o presidente até qual ameaçou descer a Cordilheira dos Andes para enfrentar os “brasileiros do Acre” na planície amazônica, mas a guerra acabou antes disso. “A guerra agora é outra. Se quisermos ter desenvolvimento e fazermos jus aos sonhos dos fundadores do Acre, temos que cuidar deste que é um dos maiores problemas ambientais da Amazônia, as enchentes do Rio Acre”, diz o senador Marcio Bittar (União-Ac).

O discurso, de um aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro e que foi relator do Orçamento Geral da União (OGU), de 2020 a 2021, quando o então foi criado o chamado Orçamento Secreto, derrubado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mais parece simpatizante de Marina Silva, embora seja bolsonarista convicto. Em matéria de inundação, Marcio Bittar sabe bem do que está falando também: em 1997, quando era deputado estadual no Acre, ele escapou de um acidente aéreo quando visitava áreas alagadas na cidade de Sena Madureira, acompanhado da então prefeita da cidade Toinha Vieira e de seu marido José Vieira, que também era deputado estadual.

Leia também: Ministros Marina Silva e Waldez Góes garantem recursos federais para o Acre

O avião onde o grupo político estava caiu durante o sobrevoo numa região chamada Cafezal. O piloto, conhecido por “Barbinha”, apesar de sua experiência morreu afogado. Márcio Bittar, que não carrega traumas do acidente e que estava inclusive ficando noivo no momento em que os ministros de Lula visitavam alagados na companhia dos outros senadores do Acre, o “desabrigado” Sérgio Petecão e Alan Rick (União-AC), apesar de suas convicções bolsonaristas, insiste numa agenda com a ministra Marina Silva.

Ruas de Rio Branco ficaram alagadas (Tião Maia/Especial para Revista Cenarium)

Urbanização

A ministra já havia se colocado a disposição para receber o senador bolsonarista, mas ela adoeceu, foi internada em Brasília e adiou o encontro. Se for recebido por Marina, Marcio Bittar buscará desengavetar um projeto de sua autoria elaborado à época do ministro Ricardo Salles, atual deputado federal pelo PL de São Paulo, no Meio Ambiente. O projeto busca a urbanização e de despoluição do igarapé São Francisco e do próprio Rio Acre. O custo do projeto é superior a R$ 200 milhões. Só os estudos de impacto para a elaboração do projeto, vencido numa concorrência privada, custam R$ 5 milhões.

Apesar do elevado valor, Marcio Bittar acredita que os recursos podem ser alcançados graças ao prestígio de Marina Silva no exterior e no País. “A ex-desabrigada pode nos ajudar a encontrar uma solução definitiva para o problema”, disse o senador. “Basta esse seu prestígio para fazer com que o Ministério Público Federal e a própria Justiça Federal façam composições em relação ao pagamento de multas milionárias por grandes empresas, inclusive estatais, de multas ambientais em recursos financeiros para salvar a bacia do Rio São Francisco e do próprio Rio Acre”, apontou o senador.

Segundo ele, além disso, Marina Silva poderia captar recursos no exterior. Quanto às multas no Brasil, em composições do gênero, o valor cai, em acordo judiciais, para mais de 40%. Uma empresa como a Petrobras, condenada em pagar milhões de multas, numa composição assim, teria as multas amortecidas nesse percentual. “O resto dos recursos que faltar a bancada de deputados e senadores, com R$ 700 milhões anuais por cada um dos 11 membros, garante”, apontou o senador.

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