No Pará, mulheres ribeirinhas são as principais vítimas de escalpelamento  

Vítimas de escalpelamento (Reprodução/Agência Pará)
Yuri Siqueira – Da Revista Cenarium

BELÉM (PA) – Em um território onde os rios são ruas e o barco é o principal meio de transporte da população, existe um trágico acidente que tem marcado a história e mudado o rumo de muitas vidas na Amazônia. De acordo com pesquisa inédita realizada pela Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa), mais de 200 casos de escalpelamento foram registrados no Pará, que é o Estado líder na ocorrência deste grave acidente, de 1964 até 2022. As mulheres ribeirinhas são as principais vítimas.

O escalpelamento costuma acontecer em embarcações de pequeno porte, o principal meio de transporte dos rios amazônicos. A tragédia ocorre quando os cabelos compridos se enrolam nos eixos de motores sem proteção e o couro cabeludo é removido de maneira abrupta. Em alguns casos, orelhas, sobrancelhas, pálpebras e parte do rosto e pescoço também são arrancados, o que leva à deformação e, às vezes, até a morte.  

Leia também: Turismo ecológico promove sustento de comunidades indígenas e ribeirinhas na Amazônia
Ação de prevenção ao escalpelamento com doação de toucas (Reprodução/Agência Marinha de Notícias)

Segundo o estudo realizado pela Fapespa, além do Pará, somente dois outros Estados registraram escalpelamento no País: Amapá e Amazonas. O perfil da vítima traçado pela pesquisa, a partir de dados fornecidos pela Capitania dos Portos e a Casa de Apoio Acolher, aponta que a maioria dos casos, nos últimos 50 anos, aconteceu na região do Marajó. A maioria das vítimas são mulheres, correspondendo a 98%, sendo 67% dessas vítimas crianças e adolescentes entre 2 e 18 anos.  

PUBLICIDADE

O levantamento ainda apontou os municípios onde são maiores os números de casos de escalpelamento. Em 58 anos, foram registrados 207 casos, em 41 cidades do Estado. O ranking indica Portel na primeira posição, com 24 casos, sendo as vítimas todas mulheres; em seguida está Breves, com 22 casos, também apenas com vítimas mulheres; Curralinho está na terceira posição, com 16 casos, sendo 15 mulheres e um homem; Cametá teve 15 casos, registrando 14 mulheres e um homem; e Melgaço, com 12 acidentes, sendo 11 mulheres e um homem.

Luta por conscientização

Em Moju, Deusiane Almeida foi a primeira vítima do escalpelamento, quando tinha apenas 15 anos. No deslocamento de sua residência para ir ao trabalho na roça, com seus pais, ela foi surpreendida com o seu cabelo enrolando no eixo do motor e arrancando o couro cabeludo. O acidente ocorreu em 2001.

Conhecida nas redes sociais como “Anny Famosinha”, Deusiane realiza um trabalho de cuidado e conscientização, palestrando para mulheres ribeirinhas e nas regiões rurais do Pará sobre o escalpelamento.  

Eu comecei visitando as comunidades desde que tive alta do hospital pela primeira vez. Comecei no município onde eu morava e, hoje, tenho auxílio das redes sociais também, onde faço vídeos. Por meio do meu trabalho, acabo alcançando um número de pessoas para falar sobre a prevenção ao escalpelamento. Peço oportunidades nas escolas, comunidades, nas rádios. Tenho ido nas ilhas e também nas comunidades ribeirinhas”, comentou Anny.

Anny Famosinha, arquivo pessoal.
Anny Famosinha sofreu o acidente em 2001, quando tinha apenas 15 anos (Reprodução/Instagram)

Por meio da luta pela erradicação do escalpelamento, Anny Famosinha conseguiu em Abaetetuba, município do Pará, a aprovação da Câmara Municipal da cidade para instituir o dia 19 de janeiro como o Dia Municipal de Prevenção ao Escalpelamento. A data é referência ao dia do acidente da influenciadora.

Hoje em dia, o escalpelamento não é só pelos motores de embarcações, já tivemos vítimas com máquinas de açaí, com gerador de energia, com vários tipos de motores rotativos. Eu luto para que outras mulheres não venham passar pelo que eu já passei”, afirmou.  

Proteção

De 2009 a 2022, a Marinha implantou 5.339 eixos de cobertura de embarcações. A instalação dessas coberturas é um procedimento crucial pela sua eficácia na erradicação dos acidentes com escalpelamento. Vários outros órgãos realizam serviços e ações para o enfrentamento a esse tipo de acidente.  

Militar da Marinha durante instalação da cobertura de eixo de motor (Reprodução/Agência Marinha de Notícias)

Em Belém, capital do Pará, o atendimento às vítimas de escalpelamento é realizado pela Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, por meio do Programa de Atendimento Integral às Vítimas de Escalpelamento (Paives). Outro recurso de atenção às vítimas de acidente com escalpelamento no Pará é a Casa de Apoio Espaço Acolher e também a ONG dos Ribeirinhos Vítimas de Acidente de Motor (Orvam).

 “Existe uma frase que costumo dizer que é: trago em mim cicatrizes profundas, mas elas não me impedem de sorrir e continuar lutando. Não ao escalpelamento”, finalizou Anny.

Leia mais: Prática de esportes fortalece direitos de jovens ribeirinhos da Amazônia
Editado por Jefferson Ramos
Revisado por Adriana Gonzaga
PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.