‘Os garimpeiros sempre estiveram em Terra Yanomami’; Ailton Krenak analisa crise humanitária em terras indígenas

'Os garimpeiros nunca cessaram de estar dentro da Terra Yanomami', diz Krenak (Divulgação)
Ívina Garcia – Da Revista Cenarium

MANAUS – Um dos maiores líderes indígenas brasileiros desde 1980, Ailton Alves Lacerda Krenak, Ailton Krenak, é um pensador, ambientalista, pesquisador, filósofo, poeta, escritor da etnia indígena crenaque e professor Honoris Causa pela Universidade de Brasília (UnB).

Em entrevista exclusiva à REVISTA CENARIUM, Krenak analisa a crise humanitária vivida pelo povo Yanomami e suscita o debate sobre a responsabilização das instituições públicas e toda a sociedade sobre a morte de crianças e adultos indígenas por desnutrição e outras doenças, além de confrontar o senso comum sobre a Amazônia.

‘O que está acontecendo é uma banalização geral sobre o debate da Amazônia’, defende Ailton Krenak (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Nascido em Itabirinha de Mantena, em Minas Gerais, o líder indígena saiu das margens do Rio Watú (Rio Doce) para desenvolver um importante trabalho ativista pela luta dos direitos dos povos indígenas, na década de 1980, dedicando-se na criação e participação de instituições indígenas que possuem um papel importante no resgate histórico da cultura brasileira.

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Krenak é peça central para a adição do “Capítulo dos Índios” na Constituição de 1988, após discurso emblemático na Assembleia Constituinte, em 1987, onde pintou o rosto com pasta de jenipapo, em manifestação contra os retrocessos que os indígenas estavam sofrendo.

Krenak durante discurso emblemático na Assembleia Constituinte, em 1987 (Reprodução/Arquivo Pessoal)

REVISTA CENARIUM: Onde falhamos, como sociedade, com os Yanomami?

Ailton Alves Lacerda Krenak: Eu me faço essa pergunta também. E os jornalistas introduzem outra questão: “como que o Brasil não viu o que estava acontecendo ali?”. Eles perguntam como o Brasil não viu, e isso nos faz pensar que o País, na verdade, não existe. Nós naturalizamos a ideia de que existe um Brasil com duzentas e tantas milhões de pessoas que estão atentas ao que está acontecendo aqui conosco. Isso é uma ilusão, senão a gente não teria aquele episódio da invasão de Brasília no começo do ano. A imagem que me ocorre sobre onde falhamos é a imagem de um acampamento dentro da escuridão que, ocasionalmente, dá um raio e, naquele instante, olhamos uns para os outros apavorados com a realidade e dizemos: onde falhamos?

Falhamos quando a gente naturalizou a ideia de que somos um País, uma nação, de que a língua portuguesa nos unifica. De que quando alguém dá bom dia no jornal é para todo mundo, e não é verdade. Eles dão bom dia para certa camada que assiste aos programas, que liga a televisão e tem acesso a esses recursos materiais, mas existem milhões de pessoas que não têm acesso a nada disso.

RC: Era uma tragédia anunciada?

AK: Quando a gente chega no ponto específico da tragédia Yanomami, podemos dizer que a tragédia aconteceu em um lugar escondido. É como se você tivesse tendo contato com uma pessoa que sofreu abuso continuado durante décadas, dentro do porão, e um dia essa tragédia veio a público. E por que eu digo ser uma tragédia escondida? Porque metade dos brasileiros não sabe, sequer, onde é a Amazônia. A maioria das pessoas vai falar lá no Norte. Infelizmente, só se viram as lentes para a Amazônia quando tem uma desgraça. E essa é uma das possíveis respostas sobre onde falhamos. Será que falhamos em tudo?

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Ailton Krenak é jornalista, escritor, pesquisador, ambientalista, filósofo, poeta e um dos principais pensadores da atualidade (Divulgação)

RC: A culpa é dos governantes ou de todos nós?

AK: Como eu vou querer que o brasileiro comum saiba onde é o território Yanomami, ou o que está acontecendo lá? É uma ilusão, por isso, eu evoco a imagem do acampamento no escuro, quando dá um raio, a gente olha assustado um para o outro. É a nossa história, uma história de ocultação e de aparições relâmpago de realidades que, de uma hora para outra, deixa todos indignados e horrorizados. E, no caso do nosso povo Yanomami, falo que a relação que eu tenho com meu amigo Davi Kopenawa é de quando nós tínhamos menos de 30 anos, no final da década de 1970. Nunca encontrei ele em um momento em que não tivesse denunciando o genocídio Yanomami.

Os garimpeiros nunca cessaram de estar dentro da Terra Yanomami. Em 1991, quando o presidente Collor mandou bombardear as pistas de pouso, foi feita uma intervenção corajosa, que ele mobilizou as Forças Armadas de verdade. Foi uma ação muito mais coesa e intensa. Um ou outro garimpeiro pode ter ficado por lá, mas a massa garimpeira, os núcleos, foram todos retirados de dentro do território Yanomami.

Mas a pergunta é a seguinte: e quem ficou cuidando das fronteiras? Que ação o governo imprimiu para dar assistência aos Yanomami para que eles não ficassem tão vulneráveis? A resposta é nenhuma, de nenhum governo.

‘Os garimpeiros nunca cessaram de estar dentro da Terra Yanomami’, diz Krenak (Garapa – Coletivo Multimídia/Reprodução)

RC: Há indícios de que houve uma certa flexibilização que permitiu a intensificação dos garimpeiros em Terra Yanomami. Como o atual governo pode agir?

AK: Exatamente, reativar, por exemplo, programas que já foram construídos nos últimos 20 anos de monitoramento e vigilância nas fronteiras do território. São programas caros, inclusive. A parte de configurar esses programas de proteção territorial e desenvolvimento daquela região foi produzida com recursos elevados e com a colaboração de especialistas e técnicos. Se eles fossem implementados, ao longo dos últimos 20 anos, não teria se criado as condições de invasão que foram propiciadas nos últimos quatro anos, com patrocínio de um governo.

Quer dizer, o Brasil negligenciou, inclusive, ferramentas que já existem. O Davi Kopenawa está pedindo, há dez anos, ao Ministério do Meio Ambiente e ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que eles fizessem, ativassem as frentes de monitoramento de vigilância, de avivamento das fronteiras, com articulação de diferentes órgãos federais que incluem, obviamente, o Ibama e a Funai, mas nenhum deles efetivaram as ações. É como se aqueles programas configurados fossem para ficar em Brasília, em alguma mesa.

RC: Como é a sensação de estar nesse acampamento escuro e vir um clarão que, como o senhor falou, nós do Norte, estamos? Como você avalia esse sentimento?

AK: É muito desesperador, porque essa sensação esvazia a tal da “esperança cidadã”. Alguns momentos, as pessoas se referem a uma cidadania construída com trabalho, educação e com a difusão de ideias sobre nós mesmos. A desilusão sobre essa possibilidade é o que fica, diante de tanto aviso e de tanta indiferença. Espero que essa reação súbita do aparelho do Estado brasileiro, sob o Governo Lula, não seja só um efeito reflexo, igual quando você bate no joelho de alguém e ele quica. Espero que o Brasil traga ações efetivas com a novidade do Ministério dos Povos indígenas e da nossa deputada Joenia Wapichana presidindo a Funai. Aquele evento, que aconteceu no Vale do Javari, com os assassinatos de Dom e Bruno, é a cara da política indigenista para a Amazônia, é o envolvimento com todo tipo de abuso. Então, a nossa Joenia terá um desafio monumental.

RC: Como podemos evitar que outros povos, de recente contato ou não, passem por uma crise humanitária como a que os Yanomami estão enfrentando?

AK: Em primeiro lugar, é consenso de que o governo brasileiro terá que recuperar a capacidade das agências de Estado para que elas funcionem, porque elas foram destruídas. É como se você pegasse um País que foi bombardeado, do ponto de vista dos equipamentos, dos meios e até do recurso financeiro. Acho que deveria ser questionado, inclusive, porque só existem duas delegacias da Polícia Federal no Amazonas e não 30 delegacias. A questão central é dar valor para os investimentos feitos, até agora, e fazer investimentos de verdade para que essa região não fique na zona obscura do radar dos brasileiros, no sentido geral, da sociedade brasileira. O governo federal tem que priorizar ações para que o bioma seja, de verdade, um lugar possível de viver, das comunidades humanas prosperarem. E eu estou falando prosperar num sentido humano, não de progresso.

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RC: Há muito senso comum no debate sobre a Amazônia?

AK: Se o senso comum já acha que a Amazônia é tão longe que eles não conseguem conhecê-la, os governos locais e federal têm a obrigação, agora, de explicitar a diversidade que é a Amazônia. O que está acontecendo é uma banalização geral sobre o debate da Amazônia. Com a tragédia Yanomami, a banalização geral sobre o debate da Amazônia continua.

Misturam tudo, prioridades urgentes que precisam ser feitas, agora, com questões geopolíticas do passado, ou, questionam, ainda, por que a gente nunca fez valer o Tratado de Cooperação Amazônica? Ora, o Tratado de Cooperação Amazônica nunca se fez valer porque o Brasil não tem o menor interesse em movimentar o tratado. Se tivesse, nos últimos 20 anos, teríamos escutado falar alguma coisa sobre os acordos de cooperação com as fronteiras da Amazônia com a Venezuela, Colômbia e Peru.

RC: Como está o governo Lula no debate amazônico?

AK: A gente podia aproveitar, agora, e perguntar para o presidente Lula quando é que ele vai fazer reunião com os governos da bacia amazônica. Porque ele já começou uma série de negociações com o cone sul, ele foi para a Argentina e participou de reuniões com governos que fazem fronteira com Estados do Sul. Ele esteve em Roraima, em um momento gravíssimo da tragédia Yanomami. Foi introduzir os auxiliares na questão, mas, agora, quando ele vai chamar os governos da bacia amazônica para compartilhar a responsabilidade de cuidar desse imenso território? Inclusive, seria uma maneira das pessoas pararem de pensar que a Amazônia é um lugar dentro do Brasil.

RC: Como o senhor analisa a atuação dos governadores estaduais da Amazônia? É fato que grande parte da responsabilidade é do governo federal, mas como você vê a cooperação dos líderes locais?

AK: O tema meio ambiente é, geralmente, uma atribuição do governo federal, e não culpo os governos estaduais por tudo o que está acontecendo. Eu não incluiria eles na lista daqueles que não viram o que estava acontecendo, mas incluo entre aqueles que não tiveram o que fazer com o que estava acontecendo, porque eles estão imersos em realidades próprias, que eles têm que dar conta, e o governo federal, no caso dos Yanomami, foi o agente que precipitou a tragédia. Não tinha como os governos estaduais agirem contra o governo central, o governo central estava destruindo.

Mas a questão é a seguinte: e quando Brasília coopera com a melhor governança da Amazônia, o que os governadores locais fazem? Eles se associam com o compromisso nacional ou eles continuam fazendo suas políticas de interesse local? Porque os garimpeiros, dentro da Terra Yanomami, podem parecer uma boa política para o governador do Estado de Roraima, pode não dar prejuízo para ele, pelo contrário, pode animar a economia, pode resolver algumas questões que ele não seria capaz de buscar fora da questão predatória do garimpo.

RC: O senhor consegue ver uma coalizão em favor dos povos tradicionais da Amazônia?

AK: O desafio, agora, é saber se eles (governadores) são capazes de cooperar com o governo federal, que está com boa vontade, para que as instituições, equipamentos e agências locais cooperem na execução de uma política responsável com relação à vida das pessoas ribeirinhas, indígenas e comunidades tradicionais e não uma questão específica para fazer de vitrine da Amazônia.

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