‘Parque das Tribos’: favelização e luta por direitos básicos

Retratos da falta de serviços básicos na Comunidade Parque das Tribos (Fotos de Suamy Beydoun e Ricardo Oliveira/Composição de Paulo Dutra/Revista Cenarium)
Ricardo Chaves – Da Revista Cenarium

MANAUS (AM) – Casas de tijolo aparente, ruas com pouco asfalto e problemas estruturais. O “Parque das Tribos“, maior bairro indígena do Brasil em homologação, poderia ser uma comunidade comum de Manaus, mas os rostos indígenas da maioria dos moradores carregam em seus traços uma história de luta por um pedaço de chão e pelo direito ao acesso a serviços básicos que dão à vida mais dignidade.

As promessas não cumpridas de melhorias por parte do poder público são muitas, se acumulam, ao longo dos anos, e evidenciam o descaso, segundo os moradores. Elas contrastam com a realidade desses brasileiros empurrados de suas terras de origem pela pobreza e falta de oportunidades, e que convivem com fornecimento precário de energia elétrica, água e transporte público, falta de saneamento básico e o medo de ver a casa construída com esforço ir ao chão, no primeiro sinal de chuva intensa. É um cenário de favelização, como o que toma conta de grande parte de Manaus, cidade com maior presença de indígenas do País, em números absolutos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O Parque das Tribos está localizado no bairro Tarumã, na Zona Oeste de Manaus. Foi a partir da união de João Diniz, da etnia Baré, e Raimunda da Cruz Ribeiro, da etnia Kokama, que a comunidade começou a ser formada, gradativamente, a partir de 1980. O casal veio do Médio Rio Solimões, nas proximidades do município de Tefé, em busca de cuidados médicos, trabalho e educação. Logo depois, vieram outros indígenas.

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No entanto, foi apenas no dia 14 de abril de 2014, sob a liderança do então cacique-geral Messias Kokama e com o apoio da cacica Lutana Kokama, filha do casal, que a comunidade Parque das Tribos foi fundada. Segundo os geógrafos Luiz de Freitas e Ivani de Faria, no artigo “Parque das Tribos: territorialização, conflitos e a construção de um território indígena urbano na área do Tarumã na cidade de Manaus – AM”, a ocupação do espaço ocorreu gradativamente e o mês de abril de 2014, marca o desenvolvimento de ações como a construção de moradias e a apropriação do solo urbano.

Comunidade Parque das Tribos vista de cima (Suamy Beydoun/Revista Cenarium)

Eles explicam ainda que a ocupação começou a partir da comunidade Cristo Rei e, como não foi possível abrigar outras famílias no espaço, as lideranças indígenas solicitaram informações sobre o terreno onde hoje é o Parque das Tribos. Os dados enviados pela Secretaria de Estado de Política Fundiária (SPF), Instituto de Terras do Amazonas (Iteam) e outros órgãos revelou que a terra era devoluta, ou seja, terras públicas sem destinação pelo Poder Público e que, em nenhum momento, integraram o patrimônio de um particular. Sendo assim, fundaram a comunidade no dia 14 de abril de 2014.

Em seus dez anos de existência, a comunidade Parque das Tribos enfrentou pedidos de reintegração de posse que, no final, tiveram desfecho favorável aos indígenas. Com o falecimento de Messias devido a complicações da Covid-19, coube a Lutana guiar os indígenas em sua reivindicação territorial. Atualmente, a comunidade abriga mais de 1 mil famílias, de 35 etnias sob a liderança da cacica Lutana Kokama. Eles estão entre os 324.834 indígenas que moram em zonas urbanas brasileiras, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010. O Censo realizado em 2022 ainda não publicou o recorte urbano e rural. Há também moradores não indígenas.

Em 2022, o MapBiomas mostrou que a capital ganhou 14 mil hectares de favelas entre 1985 e 2022, ou seja, pelo menos metade do crescimento da área urbana na capital, nesse período, foi desse tipo de moradia. Para se ter uma ideia, é como se tivessem sido construídas 1.666 Arenas da Amazônia, estádio de futebol construído em 2014, com o custo de R$ 623.857.919,03 milhões para os cofres públicos, para receber jogos da Copa do Mundo Fifa.

A comunidade indígena em área urbana abriga mais de 1 mil famílias de 35 etnias (Suamy Beydoun/Revista Cenarium)

Se de um lado os agentes públicos compreenderam a necessidade de investir para garantir a realização do maior espetáculo da terra, por outro, faltou o mesmo entendimento para resolver problemas críticos e estruturais em bairros periféricos de Manaus e em comunidades, como é o caso do Parque das Tribos, que é um reflexo do histórico crescimento desorganizado e favelizado de Manaus impulsionado pelo êxodo do interior para a capital.

Organizados, os indígenas buscaram estabelecer diálogo e protocolar requerimentos solicitando serviços básicos ao poder público, ao longo dos anos. Foi apenas recentemente que conquistaram água encanada, luz elétrica, ruas asfaltadas, iluminação pública em parte da comunidade, uma escola e uma unidade de saúde. No entanto, a qualidade do trabalho executado após anos de articulação com a administração pública municipal é questionada.

“O prefeito mandou as empresas virem após nossas reivindicações. Mas é um trabalho que não está de qualidade. Está faltando muita coisa, principalmente a drenagem do esgoto. Estão jogando o asfalto sem a drenagem. Eu peço que as pessoas que estão lá dentro [da prefeitura] atendam nossa reivindicação, que possa ser uma estrutura de qualidade para a nossa comunidade”, disse a cacica Lutana.

Cacica Lutana Kokama, liderança do Parque das Tribos, em 2023, em uma área de erosão, uma das preocupações dos moradores da comunidade (Ricardo Oliveira/Arquivo/Revista Cenarium)

Em seu primeiro ano de criação, a REVISTA CENARIUM visitou, em dezembro de 2021, o Parque das Tribos e revelou que a comunidade sofria com riscos de desabamentos de terra. Na época, a reportagem conversou com Samia Gonzaga da Silva, da etnia Kanamari, moradora do Parque das Tribos desde a fundação e secretária da associação de moradores. Na época, ela relatou problemas de infraestrutura e o medo dos deslizamentos de terra.

Dois anos e quatro meses depois, encontramos Samia e outros moradores que relataram ainda conviver com a situação, apesar do município ter realizado intervenções. Agora, eles acusam o poder público municipal de “maquiar” e não resolver a situação com obras de qualidade para pôr fim aos deslizamentos. “As ruas continuam a mesma coisa e até pior. O prefeito veio na comunidade e disse para os indígenas que iria asfaltar as ruas da primeira etapa antes do Carnaval, mas a pavimentação ficou incompleta e o serviço não foi bem feito. Infelizmente, fizeram uma maquiagem”, relatou Samia.

A moradora refere-se à visita do prefeito de Manaus, David Almeida (Avante), em janeiro deste ano, à comunidade. Na visita, Almeida anunciou o início de um projeto de reestruturação da comunidade e que, após o carnaval, assinaria ordem de serviço para pavimentar a segunda etapa do parque.

Ao centro, o prefeito de Manaus, David Almeida (chapéu), acompanhado da equipe da Secretaria Municipal de Infraestrutura (Divulgação/Seminf)

“Estamos iniciando o asfaltamento dessa primeira etapa, que serão nove ruas. Posteriormente, após o Carnaval, daremos a ordem de serviço para asfaltar o Parque das Tribos 2”, declarou na ocasião.

Passados alguns meses, o que poderia ser o desfecho de um sonho aguardado há uma década pelos moradores, cedeu lugar à apreensão, incerteza e tristeza. As obras não prosseguiram e o poder público municipal não informou o motivo aos moradores para a não conclusão dos serviços. No dia 4 de janeiro, acompanhado do secretário municipal de Infraestrutura (Seminf), Renato Júnior, o prefeito anunciou a conclusão de uma obra de contenção de uma erosão na Rua Siusi, no Parque das Tribos.

No entanto, a situação está longe de ter sido resolvida, de acordo com relato dos moradores. “Sempre tivemos diálogo com a prefeitura, mas só recebemos promessas. E quando chegam as ações até a comunidade o serviço fica pela metade”, diz a cacica.

Medo das chuvas

O auxiliar de almoxarifado Raimundo Nonato, da etnia Kulina, lembra do dia que presenciou a chegada do asfalto. Nas primeiras semanas, ele relata que a empresa contratada pela prefeitura realizou ações para preparar as ruas. Um tempo depois, de forma inexplicável, os trabalhadores pararam e não finalizaram o serviço.

“Estava chegando do trabalho e vi as caçambas de asfalto chegando, mas ninguém sabe que ruas eles asfaltaram. Colocaram barro, piche e um asfalto fino. Não fizeram nada para escoar a água quando cair a chuva, que é muito forte por aqui. Como demoraram para finalizar. Alguns trechos da rua já desabaram”, diz o morador.

Raimundo Nonato, da etnia Kulina, afirma que a empresa contratada pela Prefeitura de Manaus deixou de realizar serviços na comunidade (Suamy Beydoun/Revista Cenarium)

Darlene Ferreira mantém um comércio na rua Siusi e diz que as máquinas foram ao local, mas o que era para ajudar, acabou prejudicando mais pelas obras não terem sido concluídas.

“Quando chove, temos muitas dificuldades. Alguns trechos da rua estão desabando e nosso medo é de a nossa casa ser engolida. Alguns já perderam fossa e muro, na primeira chuva forte. A gente tenta fazer o que pode. Nos organizamos e compramos entulho para colocar na rua e melhorar um pouco a situação e tentar evitar o pior”, relata a moradora.

Darlene Ferreira mantém um comércio de estivas na rua Siusi, no Parque das Tribos (Suamy Beydoun/Revista Cenarium)

Próximo ao local, Antônio Bezerra, morador da rua Puranga, diz que o período de chuvas sempre assusta os indígenas pela força das águas, que acaba movendo o barro das ruas do local. A rua onde mora ainda aguarda asfalto.

“Na minha casa é a maior luta para chegarmos, porque a chuva levou o barro da rua. O serviço que veio, infelizmente, foi malfeito. Colocaram o asfalto, mas não tem sarjeta. Algumas ruas começaram e não terminaram, e o barro colocado já ameaça desabar, já que o asfaltamento não foi concluído. É uma situação triste. Estamos abandonados e esquecidos aqui. Precisamos de cuidados. Também somos seres humanos”, lamenta.

Antônio Bezerra, morador da rua Puranga, relata que o período chuvoso dificulta locomação de moradores (Suamy Beydoun/Revista Cenarium)
Água

Para ter acesso à água potável, muitos moradores do Parque das Tribos perfuram poços artesianos. A aposentada Áurea dos Santos é uma das moradoras que participou da organização da comunidade, em 2014 e conta que, apesar do avanço dos últimos anos e de muitas casas contarem com o serviço, ele ainda é insuficiente em muitas áreas da comunidade.

“A falta de água aqui já foi muita. Hoje, melhorou bastante. Na minha casa, tive que utilizar o dinheiro da aposentadoria para furar um poço artesiano. Nem todo mundo tem condições de construir e a falta de água ainda afeta muitas famílias. Conquistar a nossa casa foi muita luta. A gente torce para essa situação melhorar logo”, diz.

Transporte

O Parque das Tribos está localizado a 22,7 quilômetros de distância do Centro de Manaus. As linhas de ônibus 011 e 005 são o principal meio de transporte dos moradores da comunidade para ir ao trabalho ou à escola. Como em outras regiões da capital, o ônibus demora, não tem boas condições de preservação e lota em horários de pico. Pela dificuldade de acesso de veículos, motoristas de aplicativo demoram para aceitar corridas.

Pai de uma estudante do Ensino Médio, Raimundo Nonato lamenta que a filha Giovanna precise pegar ônibus para chegar à Escola Estadual Vicente Telles de Souza, que fica localizada na Avenida Constantino Nery. Como o ônibus não passa na Rua Siusi, ela precisa percorrer um trajeto até uma rua principal, para acessar o transporte.

“Minha filha sai quatro horas da tarde para chegar na escola. Só volta às 21h, em um ônibus lotado e com a mochila pesada nas costas. Quando tem mais sorte, chega às 20h, dependendo do trânsito ou se nada acontece com o ônibus no caminho”, afirma.

Dificuldade de acesso de veículos é uma reclamação dos moradores do Parque das Tribos (Suamy Beydoun/Revista Cenarium)

De acordo com Samia, muitos indígenas perderam oportunidades de trabalho devido à demora dos ônibus. Ela diz que a situação ainda é crítica, pois motoristas de aplicativo cancelam corridas para a comunidade. “A gente passa horas na parada de ônibus e, quando passa, é lotado. A principal situação é que eles demoram. Gostaríamos de mais opções e outras linhas. A situação aqui de transporte é de calamidade. Motoristas de aplicativo evitam aceitar corridas. Passamos mais de duas horas pedindo até conseguir alguém”, relata a líder comunitária.

Samia explica que nem todo morador tem condições de utilizar o transporte por aplicativo e a situação ainda se soma à falta de ruas na comunidade, que não existem ou estão em péssimo estado.

A CENARIUM buscou resposta do Instituto Municipal de Mobilidade Urbana (IMMU) sobre a demora relatada pelos moradores e a manutenção dos ônibus. O órgão informou que, recentemente, foi realizado aumento de frota nas linhas 011 e 005.

Ambas operam conforme demanda de passageiros. Para a reportagem, a pasta informou ainda que irá programar uma fiscalização nas linhas para verificar se está sendo cumprido o quadro de horários. Segundo o instituto, a frota que está operando passa por higienização e manutenção diariamente.

Energia precária

Os moradores da rua Messias Kokama, que leva o nome de um dos fundadores do Parque das Tribos, convivem com a falta de energia elétrica e de asfaltamento nas ruas. O autônomo Claudemir Costa, da etnia Sateré-Mawé, mudou-se para a comunidade, após alguns anos morando na ocupação Cidade das Luzes.

Ele e a esposa, Nilza Costa, têm deficiência física e têm duas filhas, uma com transtorno neurológico e outra com problemas cardiopáticos. Por conta da insegurança da Cidade das Luzes, ameaças de morte e medo de retaliações se mudaram da ocupação. Apesar da nova moradia também não ter tanta segurança, o casal sente-se mais acolhido, por estar entre iguais. No entanto, a falta de energia e de serviços básicos prejudica o dia a dia da família.

“Nós já tentamos ligar a energia, só que a concessionária diz que não tem poste. A gente não queria, mas recorre a ‘gatos’ [ligação irregular de energia]. Mesmo assim, é muito ruim, e já perdemos a máquina de lavar e a geladeira. A gente quer pagar direito, tenta ir atrás, mas não tem retorno”, diz Claudemir.

Casa em que o autônomo Claudemir Costa vive no Parque das Tribos não possui energia elétrica (Suamy Beydoun/Revista Cenarium)

A CENARIUM entrou em contato com a concessionária sobre a situação relatada pelos moradores e confirmou que a instalação de postes é de sua competência. A Amazonas Energia informou que a via necessita receber melhorias da Prefeitura de Manaus como arruamento, asfalto e urbanização na totalidade para viabilizar a entrada dos caminhões. Apenas dessa forma será possível finalizar as obras da rede e, assim, realizar a ligação de energia para os consumidores da área.

Enquanto os serviços de melhoria não são feitos nas vias da comunidade, Claudemir e Nilza não conseguem acesso a consultas médicas, pela dificuldade de locomoção e pelas ruas da etapa ainda estarem sem asfalto ou pouco conservadas. “Ambulância não sobe aqui. Precisamos de ajuda de vizinhos para chegar até um local para pedir um motorista de aplicativo. Mesmo assim, demoram a aceitar. Torcemos para a situação melhorar”, diz Nilza.

Ao todo, o Parque das Tribos 2 é composto por 13 ruas. Todas sem asfalto e com problemas de iluminação. Pessoas com deficiência, o casal depende das filhas para comprar alimentação e trazer outros mantimentos para a casa.

Ruas sem asfalto e com entulhos dificultam acesso de moradores às casas (Suamy Beydoun/Revista Cenarium)

“Assim como a nossa família, outras também têm parentes com deficiência. Nossas filhas, às vezes, voltam feridas pelo mato das ruas estar muito alto e cair nos buracos. Mas, precisamos que elas saiam para trazer comida para casa”, relata Claudemir, que diz ainda que as filhas o auxiliam na locomoção pela casa.

As duas, que estão em idade escolar, estão fora da sala de aula, há quatro anos. Claudemir era mototaxista e, após sofrer um acidente em 2020, passou a utilizar cadeira de rodas. Era ele quem levava as duas filhas à escola. Sem meios de transportar as crianças, ele diz que elas tiveram que abandonar o colégio para ajudar em casa. “Elas pararam de estudar desde que sofri meu acidente e as ruas daqui são pouco iluminadas e têm muito mato. Elas acabam se machucando nos buracos. Tenho medo delas irem para muito longe e acontecer algo”, relata Claudemir.

Favelização

Dados da Fundação João Pinheiro apontam que Amazonas e Maranhão estão entre os Estados que mais possuem déficit habitacional relativo no Brasil, com percentuais superiores a 15%, em todos os anos analisados. Em agosto do ano passado, o secretário municipal de Habitação, Jesus Alves, apresentou um quadro da situação em Manaus. Segundo ele, só na capital, o déficit é de 119 mil habitações.

Para o professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e sociólogo Luiz Antônio, é importante observar Manaus e sua construção social. Para ele, as ocupações urbanas, como o Parque das Tribos, são reflexo da falta de uma política habitacional com planejamento de ruas e demais serviços.

“Na medida que você não tem um planejamento urbano, as próprias pessoas acabam implementando suas políticas e as ocupações são resultados disso. As pessoas precisam morar e na ausência de uma política habitacional você encontra o resultado objetivo disso, como a falta de infraestrutura, ruas, água potável e energia nesses locais”, explica o cientista.

O professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e sociólogo Luiz Antônio (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Segundo o sociólogo, a literatura define o conceito de favelização como um lugar que não tem serviços básicos. “Quando você tem uma população sem uma infraestrutura de entretenimento e lazer, quando as casas não têm iluminação, quando as casas não têm água potável na torneira de forma contínua e sistemática, tudo isso são características clássicas do que é um adensamento urbano favelizado”, explica.

Luiz Antônio explica também que a favelização é decorrente de um processo social e econômico que acaba produzindo uma desigualdade que não deixa outra opção para alguns grupos a não ser morar em locais sem estrutura.

“O processo de empobrecimento de uma sociedade causa a favelização. Ela não é uma escolha, é uma consequência ocasionada pela concentração de riqueza de forma absurda na mão de poucas pessoas, no caso de Manaus a concentração é assustadora”, aponta o sociólogo.

No Amazonas, 55,1% da população vive em situação de pobreza e 10,5% na extrema pobreza, conforme dados da Síntese de Indicadores Sociais 2023 do IBGE. Somando os dois indicadores, a quantidade de amazonenses na pobreza e extrema pobreza passa de 2,638 milhões. A pesquisa analisou o padrão de vida e a distribuição de rendimentos; a estrutura econômica e o mercado de trabalho; as condições de moradia e educação no País e em cada Unidade da Federação.

Rua sem asfaltamento no Parque das Tribos mostra favelização de comunidade (Suamy Beydoun/Revista Cenarium)

Historicamente, uma parcela da população indígena sofre com a invisibilidade e preconceito. Existe também uma distorção quando se trata de abordar a forma de moradia. Apesar do Censo 2010 do IBGE apontar que 896,9 mil indígenas, ou seja, 36,2% estão em área urbana e que somente 12% dos domicílios eram do tipo “oca ou maloca” e o restante predominava tipo “casa”, ainda ocorre falta de informação com relação à forma de moradia dos povos indígenas no País.

“É óbvio que eles precisam de espaços físicos em que consigam manter os vínculos com a natureza, mas aquela condição de moradia [no Parque das Tribos] só é bastante vulnerável porque aquelas famílias não têm condições de ter uma melhor”, pondera Luiz Antônio.

A desigualdade acentuada em Manaus, avalia o pesquisador, impossibilita que muitos tenham acesso ao padrão médio de moradia das cidades, como acesso à água e à energia. Ele explica que não se deve confundir a existência de espaços tradicionais em áreas urbanas com uma forma de anular a luta por urbanização das comunidades indígenas.

“Isso não invalida a necessidade de o Estado pensar nos equipamentos públicos, na oferta de serviços, no desenvolvimento de moradia e condições habitacionais que sejam decentes para essa população”, afirma.

Para ser bairro

Segundo a Prefeitura de Manaus, o Parque das Tribos, no momento, recebe serviços de regularização fundiária. Oficialmente, a comunidade não é um bairro, mas está perto de se tornar um, após muita luta e resistência das 35 etnias que ocupam o espaço.

Muitos moradores do assentamento vieram do interior do Amazonas ou são oriundos de outros bairros de Manaus e até de ocupações. É o caso de Áurea dos Santos, de Itacoatiara, pertencente à etnia Mura, e Raimundo Santos, de Eirunepé, da etnia Kulina. Eles se conheceram na capital, constituíram família e tiveram dois filhos. Antes de se mudarem para a comunidade, moravam no bairro Redenção e passaram por outras ocupações da capital até se estabelecerem na comunidade, a convite do cacique Messias Kokama e da cacica Lutana Kokama. O casal, que nasceu no interior do Amazonas, mudou-se para Manaus em busca de trabalho e melhoria na qualidade de vida. Neste ano, os dois completam 27 anos de união.

“O Cacique Messias sempre buscou organizar tudo, para não perdermos a nossa casa. Quando a documentação estava toda certa, nós nos organizamos com nossos irmãos indígenas para arrumar a terra e começar a construir nossas coisas”, conta a aposentada.

A aposentada Áurea dos Santos, moradora do Parque das Tribos (Suamy Beydoun/Revista Cenarium)

Áurea conta que, apesar das dificuldades iniciais, todo o processo de resistência, no final, valeu a pena, por viverem com outros indígenas.

“Quando realizamos algum evento da comunidade é uma alegria. Tem muito indígena dançando e cantando na sua língua. Tirando os problemas que temos, vivemos em um ambiente muito acolhedor. Conheço quase todo mundo que mora aqui e todos ajudaram o cacique Messias. O sentimento é de gratidão a ele por ter conduzido todo o processo de conquista da nossa terra. É muito maravilhoso estar com nossa gente”, disse.

Antes de se estabelecer em Manaus, Raimundo foi tripulante de um barco recreio durante muitos anos e, com o dinheiro, sustentava a família. Ele já foi rebocador de madeira e até seringueiro, antes de fincar raízes na capital e conhecer Áurea, em Manaus, no ano de 1997. Raimundo diz que decidiu morar na capital para buscar emprego, estudo e qualidade de vida.

“Minha vida foi muito difícil e já sofri muito. Viajei pelo rio, desde pequeno, para ajudar em casa e deixar a minha mãe morando em uma casa boa, pois ela morava em um flutuante no rio. Fiz a casa dela na cidade, com os trabalhos que tive em Manaus. Sou muito feliz pela minha família, e me sinto privilegiado de estar nessa comunidade”, disse.

O auxiliar de almoxarifado disse que, no começo, foi bem difícil a vida na comunidade. Muitos indígenas desistiram, no início, pelo medo de retaliações e de alguma decisão judicial fazer com que suas coisas fossem destruídas.

Vista aérea da comunidade Parque das Tribos (Suamy Beydoun/Revista Cenarium)

Quando começaram a ocupar, eles improvisaram uma construção com lona e dormiam no chão. As coisas só ficaram mais estáveis recentemente. “Começamos fazendo uma casinha de lona e, depois, colocamos palha. Tínhamos muito medo, no começo, de alguma reintegração de posse acabar destruindo as nossas coisas. Felizmente, nunca chegamos a ter a casa alvo de alguma ação”, conta o auxiliar de almoxarifado, que diz que nunca deixou de atender ao chamado do cacique Messias e da cacica Lutana, quando era necessário se unir aos outros indígenas para defender a ocupação.

“Somos eternamente gratos ao cacique Messias e à cacica Lutana, pois, graças a eles, conquistamos o nosso lar. Nós lutamos muito por nossa terra e, sempre que era necessário, nos somamos a outros indígenas para defender o Parque das Tribos”, afirmou.

Se tornar bairro

O Instituto Municipal de Planejamento Urbano (Implurb) explicou à reportagem que, conforme a legislação vigente e estudos técnicos, os procedimentos ou critérios para a transformação de um bairro, passam desde a questão da história de implantação do local, até possuir uma infraestrutura completa, como vias, calçadas, energia elétrica, abastecimento de água, drenagem, entre outros.

Também é necessário que esses espaços tenham uma diversidade de usos, como habitacional, comercial, de serviços, indústria e institucional. Também são avaliados itens como as vias de entrada e saída, se possui algum grande equipamento como porto ou aeroporto, quais tipos de áreas ocupadas por igrejas e outras religiões.

Conforme explicou o instituto, é feita uma identificação, uma leitura urbana dessa área, para que seja transformada em bairro, entre ruas comerciais, de serviços, infraestrutura urbana e outros itens.

Criança jogando futebol em rua com erosão no Parque das Tribos (Suamy Beydoun/Revista Cenarium)

A Prefeitura de Manaus informou que tem investido no Parque das Tribos com uma série de serviços para que a comunidade tenha, no futuro, a concepção de um bairro, recebendo asfaltamento, abastecimento de água e unidades de saúde, como a Unidade de Saúde da Família (USF) Prefeito Amazonino Mendes. Atualmente, existem 63 bairros oficiais em Manaus. Dentro do conceito do que é um bairro, a tendência, segundo o município, é que o Parque das Tribos, se transforme, seguindo um decreto-lei.

Procurado pela CENARIUM, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) explicou que ainda não é possível afirmar que o local se trata de um bairro, mas sim um aglomerado ou comunidade. No entanto, em setembro, um novo estudo será divulgado pelo órgão, que poderá permitir a mensuração e chegar à conclusão. Por enquanto, o Parque das Tribos ainda não faz parte da lista oficial de bairros de Manaus.

‘Parque das Tribos é Manaus’

A população indígena de Manaus pode ser encontrada em todas as regiões da cidade. Só na capital, de acordo com dados do Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são 71,7 mil, tornando-se a cidade mais indígena do País em números absolutos. Entre os motivos da migração, estão: o desmatamento, a escassez de alimentos e a oportunidade de mais acesso à saúde e à educação. Apesar da busca por melhores condições de vida, são as periferias, locais muitas vezes sem saneamento básico ou outros serviços prioritários, que servem de refúgio para esses grupos, a única opção para a maioria.

Para o antropólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Raimundo Nonato, o processo histórico de reivindicação dos indígenas do Parque das Tribos é uma forma de ampliar a pauta de ação do poder público. Além de serem pleitos legítimos e um exercício pleno de sua cidadania, o pesquisador acredita que a organização dos indígenas serve como referência a outros grupos, como negros e pessoas que moram em periferias, para que possam se organizar e cobrar que o Estado exerça o papel de promover o acesso a serviços básicos.

“Não são só os indígenas que vivem nas periferias em condições desfavoráveis. Indicadores sociais recentes, que tratam de saneamento, educação e moradia, mostram essa precariedade”, afirma Raimundo Nonato.

O antropólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Raimundo Nonato (Luiz André/Revista Cenarium)

Apesar do avanço nos últimos anos, na comunidade, é possível constatar a precariedade da oferta de serviços básicos essenciais, como o abastecimento de água e de esgoto. Dados divulgados em 2023 pelo Instituto Trata Brasil mostram que Manaus está entre as 20 piores cidades em tratamento de esgoto do País, segundo o Ranking Saneamento feito pela organização. No quesito Indicador Total de Esgoto, a cidade tem apenas 25,25%. Quanto a tratamento o percentual é de 21,58%.

Para Raimundo Nonato, vencedor do Prêmio Direitos Humanos 2014 da Presidência da República, é preciso uma política de Estado para cobrar ações permanentes, independentemente de governo. O professor recorda que pleitos como uma educação ou saúde diferenciadas para os indígenas são atribuições que devem ser promovidas pelo Estado, como prevê a Constituição.

Moradora em uma das ruas do Parque das Tribos (Suamy Beydoun/Revista Cenarium)

“O que temos assistido em Manaus, nos últimos anos, é uma ação que privilegia grupos e uma política de governo do ‘agrada um aqui e outro ali’, mas não faz efetivamente uma política de Estado. Enquanto não houver pauta e orçamento específicos para atender a essa população, nós vamos ter sempre esse legado político e essa captura do indígena para tirar uma foto e para dizer que está fazendo”, avalia o antropólogo.

O ser indígena

O pesquisador Raimundo Nonato explica que é preconceituosa a ideia de que um indígena o deixa de ser quando deixa a aldeia ou terra indígena, e que reforça estereótipos. Negar a existência de indígenas no contexto urbano é uma forma de retirar direitos fundamentais. Em Manaus, o cientista recorda que sítios arqueológicos mostram que no território da capital eles foram os primeiros habitantes do local.

“Ninguém inventa que é indígena. A cidade que temos hoje está sobre outra que existiu e sítios e atitudes dos indígenas confirmam isso. O que existe, atualmente, é que Manaus está assumindo sua cara e o ser indígena que não sucumbiu a todo o processo histórico de industrialização. O ser indígena de hoje está lutando. As novas gerações que virão terão uma concepção mais assertiva, propositiva, clara e firme. Temos jovens tendo orgulho de ser de uma etnia do Amazonas”, ressalta o antropólogo.

O professor da Ufam acredita que os números do IBGE que revelam um expressivo aumento de pessoas se reconhecendo como indígenas mostram que a tentativa de questionar o ser e “controlar o outro” se mostrou ineficaz.

Cacica Lutana e crianças tomam banho de igarapé (Ricardo Oliveira/Arquivo/Revista Cenarium)

Ele explica que, quando uma pessoa se identifica como indígena, ela está exercendo o direito de ser, e quando um grupo a reconhece como tal representa um sentimento de orgulho. “É uma forma de romper uma história que sempre foi exposta. Ele vai sentir orgulho de ser indígena pela resistência. A cultura é resistente. Se uma geração foi fragilizada, a outra se prepara para fortalecer”, avalia.

Retrato de Manaus

Raimundo Nonato explica que a comunidade formada no Parque das Tribos é uma junção pluriétnica que reflete o Amazonas e, sendo a capital uma cidade-estado que concentra a maioria dos indígenas, essa presença se torna mais clara. Ele relembra as lutas de associações, desde a década de 1980, pelo direito de existir e acessar serviços básicos, desde as situadas no Alto Rio Negro a bairros da capital.

“Tem Parque das Tribos no Alvorada, no Mauazinho, na Redenção, Cidade Nova e associações indígenas, como a das mulheres do Alto Rio Negro, das mulheres Sateré-Mawé, na Compensa. Então, quer dizer, o Parque das Tribos é Manaus. A comunidade reflete os centros urbanos que existem no Amazonas”, afirma o pesquisador, referindo-se a outras comunidades indígenas da cidade.

Leia mais: ‘Cidade das Luzes’: invasão e degradação da floresta refletem falta de plano de habitação em Manaus
Editado por Márcia Guimarães
Revisado por Jesua Maia
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