Peixe mais consumido da Amazônia corre risco de desaparecer

Jaraqui-de-escama-grossa (Semaprochilodus insignis) • Foto Acervo Musa / Fernanda Preto
Lucas Ferrante – Especial para a Revista Cenarium Amazônia*

MANAUS – A Amazônia, lar de uma biodiversidade incomparável, enfrenta uma dualidade alarmante: enquanto a seca mais severa em 121 anos afeta sua fauna e populações locais, o peixe mais consumido na região, o jaraqui, corre o risco iminente de desaparecer dos rios devido à sobrepesca. Esta problemática é objeto de estudo realizado pelos pesquisadores Ingrid Nunes, Kelmer Passos, Aline Ximenes e os professores do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Amazonas (ICB/Ufam), Izeni Pires Farias e Tomas Hrbek.

O jaraqui, responsável por 93% das capturas pesqueiras na Amazônia central, está perdendo rapidamente sua diversidade genética devido aos efeitos nefastos da sobrepesca. A pesquisa abrangeu 11 pontos de coleta ao longo da Amazônia, desde Tabatinga, no Alto Solimões, até Jacareacanga, no Pará, no Baixo Amazonas. A pesca com redes de grande porte, incluindo o período de reprodução da espécie, têm causado diminuição nos estoques naturais desse peixe tão essencial para a região e uma das principais fontes de proteína para comunidades ribeirinhas e indígenas.

A pesquisadora Ingrid Nunes enfatiza que a demanda crescente tem levado a sobrepesca em várias regiões do Amazonas, exacerbando a perda acelerada da diversidade genética do jaraqui. Ela alerta para a necessidade urgente de incluir o peixe na lista de defeso, medida crucial para garantir a sustentabilidade da pesca dessa espécie tão relevante para as comunidades locais.

PUBLICIDADE

“Em relação ao ponto de vista da pesca, o jaraqui é a espécie mais consumida do Amazonas. Os poucos estudos de estatísticas da pesca mostram que a espécie é de longe a mais pescada do Amazonas. Além disso é a espécie mais barata do mercado na maior parte do ano, sendo a principal fonte de proteína da população de baixa renda e dos ribeirinhos”, afirma Ingrid.

Segundo a pesquisadora, com a ausência do defeso, a tendência é que o tamanho populacional da espécie e, consequentemente, da diversidade genética da população, diminuam ainda mais ao longo do tempo, já que o defeso (proteção do período reprodutivo) é o único momento que a espécie tem de reproduzir em todo seu potencial e, consequentemente, aumentar no máximo o número de indivíduos dentro da espécie.

A pesquisadora ainda destaca que a espécie tem um papel ecológico importante na manutenção da vegetação ao longo dos grandes rios. “Em relação ao ponto de vista da conservação da espécie, o jaraqui é uma espécie detritívora, então é essencial para a ciclagem dos nutrientes nos ambientes onde ele ocorre. Além disso, ele também é um dispersor de sementes, um de seus alimentos, sendo fundamental para a dispersão de muitas espécies da flora”, aponta Ingrid.

Para Ingrid, a solução para a preservação do jaraqui envolve a criação de um período adequado de pesca, a fim de equilibrar os danos causados à espécie. “Esperamos que, antes de tudo, o jaraqui entre na lista do defeso, pois é a única forma de garantir uma pesca verdadeiramente sustentável da espécie”, ressalta Ingrid Nunes.

A especialista ainda aponta importância da alta variabilidade genética para a espécie, principalmente frente as mudanças climáticas que impactam a Amazônia. “A diversidade genética é importante porque é a genética que determina todas as características dos indivíduos, não só sua morfologia externa, mas também sua capacidade de lidar com as variações ambientais como extremos de seca e cheia, variação de temperatura, neutralizar ações de agentes patogênicos, lidar com os poluentes presentes na água. Uma espécie com tamanho populacional e diversidade genética reduzidos não é capaz de responder às variações que o ambiente impõe”.

No contexto amazônico, o defeso desempenha um papel crucial na proteção das espécies durante seu período reprodutivo. Estabelecido anualmente, de acordo com o Decreto Federal nº 6.514/2008, esse período visa preservar as espécies durante sua reprodução. A multa para quem desrespeita as restrições de pesca durante o defeso varia de R$ 700 a R$ 100 mil, com acréscimo de R$ 20 por quilograma ou fração do produto da pescaria.

No estado do Amazonas o defeso começou em 15 de novembro e deve terminar em 15 de março, mas o Jaraqui ficou fora da lista de espécies com pesca proibida neste período.

O ciclo de vida do jaraqui é intrinsecamente ligado às mudanças sazonais dos rios amazônicos. Durante a primeira migração, os cardumes compactos de adultos e subadultos buscam os rios de águas turvas para desovar, aproveitando as condições ideais oferecidas pelo encontro com o rio principal, onde as águas são ricas em nutrientes. Este período de reprodução é vulnerável e, por isso, a imposição do defeso se torna essencial para garantir a continuidade da espécie. Sem o defeso ou ações contundentes para proteção do Jaraqui, o peixe pode deixar de fazer parte do cardápio amazônico, desaparecendo juntamente por ser o mais consumido.

Num momento em que a Amazônia enfrenta a pior seca dos últimos 121 anos, a urgência em proteger não apenas o jaraqui, mas toda a biodiversidade amazônica, torna-se ainda mais evidente. A seca afeta não só os recursos hídricos, mas também as populações locais e a fauna, tornando imperativa a implementação de medidas efetivas, como a inclusão do jaraqui no defeso para preservar não apenas uma espécie, mas todo o equilíbrio ecológico dessa região única no planeta. É evidente que a Amazônia passa por uma transformação climática que afeta a floresta, os rios, a fauna e as pessoas, ao mesmo tempo que intensificamos nossas atividades sobre o bioma. Neste contexto, é fundamental que todos nós entendamos que estamos inseridos nestes processos e não de fora deles, sendo dependentes da fauna e do equilíbrio climático e ambiental.

(*) Lucas Ferrante é biólogo, formado pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), mestre e doutor em biologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Dentre suas diferentes áreas de pesquisa, tem pesquisado a grilagem e invasão de terras na Amazônia, zoonoses e dinâmicas epidemiológicas.
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.
PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.