Programa ‘Auxílio Brasil’ deixa 8 milhões de fora com critério de renda desatualizado e cadastro difícil

Mesmo com o aumento no valor do Auxílio Brasil, número de pessoas morando nas ruas tem crescido no país. (CRISTIANO MARIZ)
Com informações do Infoglobo

MANAUS – Após trocar o nome do Bolsa Família por Auxílio Brasil, o governo de Jair Bolsonaro (PL) também redimensionou o principal programa social do país. Se antes 14,6 milhões de famílias tinham direito, em média, a R$ 190 mensais, na próxima terça-feira — a dois meses da eleição — 20,2 milhões de famílias passarão a receber R$ 600. Serão 56,4 milhões de brasileiros contemplados, 26% da população.

A expansão contrasta com os sinais de empobrecimento nas maiores cidades do país, com aumento da população em situação de rua e em insegurança alimentar. Para especialistas, isso se deve a falhas no desenho do Auxílio Brasil, como dificuldades no cadastramento e critérios de acesso desatualizados.

Evolução do valor das linhas — Foto: Arte O GLOBO
Evolução do valor das linhas — Foto: Arte O GLOBO

Há ao menos 8,3 milhões de “invisíveis”, que teriam direito a pedir o benefício se houvesse correção integral do valor que marca a linha da pobreza pela inflação desde 2004, quando foi institucionalizado o Bolsa Família.

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Cálculos feitos pelos economistas Alysson Portella e Sergio Firpo, do Insper, a pedido do GLOBO mostram que as atuais linhas de pobreza (renda per capita familiar de R$ 210 mensais) e de extrema pobreza (R$ 105) estão defasadas. Em janeiro de 2004, quando o Bolsa Família foi instituído, eram, respectivamente, R$ 100 e R$ 50.

Com a reposição inflacionária pelo IPCA no período, as linhas saltariam para R$ 143 e R$ 287. Como a correção até agora foi menor que a inflação, 8.265.501 brasileiros que estão em famílias com renda per capita entre R$ 210 e 287 e não podem pedir o Auxílio Brasil.

“O número de pessoas é alto, e me surpreendeu. O Brasil é um país muito pobre e desigual. Qualquer mudança na renda per capita influencia muito, e nós sabíamos que a falta de correção das linhas aliada à inflação alta teria forte efeito”, comenta Portella.

As linhas de pobreza, definidas pelo governo com aprovação do Congresso, consideram a renda mensal da família dividida pelo número de integrantes, incluindo crianças. São o principal critério para definir quem é pobre ou extremamente pobre e tem direito aos programas sociais de transferência de renda. Além disso, o governo aplica outros filtros de admissão, como, por exemplo, não ser casado com alguém já contemplado.

Na reformulação do Bolsa Família como Auxílio Brasil, o relator do projeto de lei, deputado Marcelo Aro (PP-MG), chegou a anunciar correção automática da linha da pobreza pela inflação, mas recuou sem o aval do governo. Ainda que fossem corrigidas, as linhas de pobreza adotadas pelo governo não são incontestáveis. Várias instituições, no Brasil e no mundo, usam outros parâmetros.

O Ministério da Cidadania afirmou que o último reajuste teve como parâmetro o IPCA entre 2018 e 2021, respeitando a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Destacou que o governo federal trabalhou para que o Auxílio Brasil “apresentasse uma resposta eficaz às necessidades dos brasileiros mais afetados pelas consequências socioeconômicas da pandemia” e que contou com consultoria de organismos internacionais, como Banco Mundial e Agência Francesa de Desenvolvimento.

A defasagem da linha de pobreza é só uma das causas para o grande contingente de brasileiros pobres “invisíveis” ao Auxílio Brasil. Especialistas atribuem o problema à formulação improvisada e de última hora do programa, que atendeu mais aos planos eleitorais de Bolsonaro, que busca a reeleição, que a critérios técnicos. O número real de pessoas que teriam direito ao benefício, mas estão à margem do sistema, é de difícil mensuração.

Tatiana dos Santos ficou 18 horas   na fila: ‘Humilhante’ — Foto: CRISTIANO MARIZ
Tatiana dos Santos ficou 18 horas na fila: ‘Humilhante’ — Foto: CRISTIANO MARIZ

Um dos sinais da ineficiência é a corrida aos serviços de assistência social para entrar no programa. Para tentar atendimento no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) da Ceilândia, cidade satélite de Brasília, na quinta-feira, Tatiana Celi dos Santos, de 45 anos, chegou à fila ao meio-dia do dia anterior.

Foi o único jeito de garantir uma das 23 senhas que seriam distribuídas na unidade naquele dia. Varia de acordo com o número de servidores disponíveis. Foram 18 horas de espera entre mais de 50 outras pessoas, que usavam um “banheiro” improvisado com chapas de compensado de madeira entre árvores.

“Isso que está acontecendo com a gente é humilhante”, diz Tatiana, que ainda não sabe se conseguirá o benefício.

Sem emprego, Luiza Gontijo, de 19 anos, também esperava no Cras da Ceilândia. A jovem, que interrompeu o ensino médio quando engravidou, queria se inscrever no Cadastro Único na esperança de receber o Auxílio Brasil para ela e o filho, de 3 anos.

“Os políticos comem carne, tomam leite. E a gente, come o que? Vamos fazer o que com nossos filhos? A comida está cara, o aluguel está caro. Hoje, o meu desemprego é a pior vergonha”, desabafou.

A rede de assistência social está pressionada, afirma Paola Loureiro Carvalho, da Rede Brasileira de Renda Básica. A ONG indica que há 19 milhões de famílias que estão numa espécie de limbo: dependiam do auxílio emergencial, criado na pandemia e pago pela última vez em outubro de 2021, mas não integram os 20,2 milhões do Auxílio Brasil.

“A fila oficial, na verdade, é a das pessoas dormindo para conseguir se cadastrar”, diz.

Com o aumento da demanda nos Cras em meio à lenta recuperação do mercado de trabalho, prefeituras têm menor capacidade de identificar famílias vulneráveis por meio da chamada busca ativa.

Distribuição ineficiente

Bruno Paixão, pesquisador da FGV, aponta a falta de foco como um complicador do programa, que distribui indiscriminadamente os recursos, sem distinguir o número de pessoas em cada família. Além de menos eficaz no combate à pobreza, aumenta o gasto do governo. O orçamento anual do antigo Bolsa Família, na faixa de R$ 35 bilhões anuais, dará lugar a R$ 160 bilhões com o benefício de R$ 600 do Auxílio Brasil.

“Você poderia atender a muitas mais pessoas, com o mesmo recurso, seria mais efetivo”, diz Paixão. “O programa é ineficiente nisso. Do jeito que está hoje não há distinção das vulnerabilidades”.

O Ministério da Cidadania afirma que os Cras e os postos de atendimento municipais do Cadastro Único são constantemente orientados a desenvolver estratégias de busca ativa para o cadastramento e a atualização dos dados da população mais vulnerável. E que lançou novo aplicativo do Cadastro Único para “facilitar o acesso dos cidadãos aos serviços sociais”.

Sergio Firpo, do Insper, observa que, mesmo que esse aumento nas transferências gere diminuição da pobreza, ela tende a ser muito instável:

“Quando você tem esse critério do “é pobre ou não é pobre” pela renda, é difícil captar essa diferença, porque a renda dessas pessoas flutua muito de um mês para o outro. Temos uma proporção de pobres menor que há um ano, mas a massa de pessoas que estão um pouco acima da linha de pobreza é alta, e elas correm o risco de voltar à pobreza”.

Marcelo Neri, diretor da FGV Social, concorda. E alerta para os riscos da “montanha russa da pobreza”:

“Vimos isso com o auxílio emergencial: pessoas que estavam remediadas e passaram a receber o auxílio ficaram em situação ainda pior quando o benefício acabou. Essa instabilidade dos programas agrava a situação”.

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