Abismo social, fome e sobrevivência: um bilionário surge, enquanto 1 milhão entram na extrema pobreza

Beulizane dos Santos, 37 anos, dá banho no neto: realidade da família é de pobreza extrema. (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)
Marcela Leiros – Da Revista Cenarium

MANAUS – “Não sei o que a gente vai comer. Não tem nada, nem ovo”. A declaração do venezuelano Alex Rafael González, 43 anos, expõe a realidade de extrema pobreza e fome vivida em pequeno barraco de cerca de 30 m², feito de madeira velha e pedaços de compensado, na comunidade Parque das Nações Indígenas, bairro Tarumã, Zona Oeste de Manaus. No local, dez pessoas, sendo quatro adultos e seis crianças, que compartilham o imóvel de apenas um cômodo. A única “vantagem”? O lugar é próprio, ou seja, não é necessário pagar aluguel.

Ele e a “família”, formada pela esposa, cunhado e uma amiga, com seus respectivos filhos, sobrevivem com uma renda mensal média de R$ 1.500. A fonte do valor são os “bicos” feitos por Alex e o cunhado em um cemitério, como venda de areia, plantação de grama e capinação. Juntos, eles são alguns dos 1 milhão de pessoas que atravessam a “linha” da extrema pobreza a cada 30 horas.

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Alex Rafael González, 43 anos, com parte da família. (Ricardo Oliveira/ Revista Cenarium)

Levantamento realizado pela Oxfam, uma ONG que atua em mais de 90 países na busca de soluções para a pobreza e a desigualdade social, mostrou que, nos últimos dois anos, o mundo ganhou um novo bilionário a cada 30 horas. Neste ano, o cenário da pandemia deve levar à miséria um milhão de pessoas a cada 33 horas, conforme as estimativas da organização.

No ano passado, o governo federal reajustou os limites para classificação das famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza no Brasil. As famílias com renda per capita de até R$ 100 passaram a ser consideradas em situação de extrema pobreza, enquanto aquelas com renda per capita até R$ 200 passaram a ser consideradas em condição de pobreza. Esses valores eram, respectivamente, de R$ 89 e R$ 178 por pessoa.

Mesmo com as dificuldades, Alex afirma que a situação é “melhor do que na Venezuela”:

“Já estou há uns dois anos aqui [em Manaus], morei no Parque Riachuelo, era do tamanho disso aqui e pagava R$ 300 de aluguel. Estou aqui [no Parque das Nações Indígenas] há uns 7 meses”,

ALEX RAFAEL GONZÁLEz, DESEMPREGADO.
Barracos construídos no Parque das Nações Indígenas, em Manaus. (Ricardo Oliveira/ Revista Cenarium)

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Na mesma localidade, a dona de casa Beulizane dos Santos, 37 anos, da etnia Mura, também vive a realidade de pobreza extrema. Ela chegou à capital amazonense em busca de melhores oportunidades e divide um pequeno imóvel com um marido, três filhos e um neto. A renda da família é cerca de R$ 400 por mês, já contando com o valor recebido do Auxílio Brasil.

“Aqui mora eu, meu esposo, meus filhos, meu neto e a minha filha. Agora quem tá trazendo o dinheiro é meu esposo, ele faz uns bicos e dá pra gente ir vivendo com pouco. Vim porque a gente precisa trabalhar, colocar algo pra vender, ter um dinheirinho a mais”,

beulizane dos santos, dona de casa.
Beulizane dos Santos, 37 anos, com o neto: “Vim porque a gente precisa trabalhar, colocar algo pra vender, ter um dinheirinho a mais”. (Ricardo Oliveira/ Revista Cenarium)

Sem comida na extrema pobreza

Uma pesquisa divulgada pelo Instituto Gallup World Poll mostrou que o risco de fome aumentou ao redor do mundo diante dos impactos econômicos da pandemia de Covid-19, mas a situação se tornou particularmente grave no Brasil.

Durante algum período nos últimos 12 meses, a parcela de brasileiros que não teve dinheiro para alimentar a si ou a família subiu de 30%, em 2019, para 36%, em 2021, patamar recorde da série histórica iniciada em 2006. De cada 100 brasileiros, 36 não tiveram dinheiro para comprar comida em algum momento do ano passado. Essa é a primeira vez que o nível de insegurança alimentar no Brasil supera a média mundial (35%).

Acúmulo de riquezas

Ainda conforme o levantamento da Oxfam, o mundo tem atualmente 2.668 bilionários, 573 mais que em 2020. Somente o setor farmacêutico, que lucrou mais com a venda de vacinas, fez 40 desses. Sozinho, o “clube do bilhão” detém o equivalente a 13,9% do PIB mundial, quase três vezes a fatia a que sua fortuna correspondia em 2000. Ainda conforme a organização, as dez pessoas mais ricas possuem um patrimônio maior que toda a riqueza nas mãos dos 40% mais pobres combinada.

A economista Denise Kassama observa que a pandemia acentuou o abismo social no Brasil e no mundo e evidenciou que todas as economias do mundo sofreram algum tipo de desgaste neste período, afetando principalmente o emprego e a renda. Porém, no Brasil, a política econômica contribui para esse abismo.

“No Brasil, com uma política de juros altos promovida pelo governo federal ajuda a aumentar este abismo. Aqueles que ficaram sem renda ou com a renda reduzida, acabam fazendo uso de cartões de crédito, empréstimos bancários ou uso do limite no cheque especial. Com os juros mais altos, essas dívidas atingem patamares impossíveis de se pagar. Por outro lado, aqueles que possuem recursos, os aplicam no mercado financeiro, multiplicando seus ganhos. Ou seja, a atual política de juros deixa os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres”,

DENISE KASSAMA, ECONOMISTA.
Renda mensal da família de Beulizane dos Santos, 37 anos, da etnia Mura, é cerca de R$ 400. (Ricardo Oliveira/ Revista Cenarium)

O sociólogo Luiz Antonio Nascimento observa que o cenário demonstra, empiricamente, o que a Sociologia já fala há mais de 100 anos: que os processos de acumulação de capital se dão pela exploração da força de trabalho de centenas de milhares de trabalhadores.

“Isso tudo mostra que o capitalismo chegou num nível de exploração dos pobres, de tal maneira, que eles são absolutamente sugados pelo capital, e é isso que gera miséria e a pobreza extrema. Combinado com isto, você tem um achatamento do salário dos trabalhadores, e quando a gente fala nisso estamos falando de todos os trabalhadores, inclusive dos profissionais intelectuais”,

LUiz antonio nascimento, sociólogo.

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