Sob pressão no exterior e da indústria nacional, Brasil sinaliza ceder em mercado de carbono

Vista geral de toras de madeira apreendidas pela Polícia Militar da Amazônia no Rio Manacapuru, em Manacupuru, no Amazonas. O desmatamento é o principal responsável pelas emissões de carbono do Brasil Foto: Ricardo Oliveira/ AFP

Com informações do Infoglobo

GLASGOW E BRASÍLIA – O governo brasileiro vinha travando as negociações para a criação de um mercado de carbono internacional desde 2019, mas após uma semana de conversas na COP26, a conferência do clima de Glasgow, o País dá sinais de ceder nos pontos de atrito que criara. O avanço se deu com um Brasil enfraquecido diplomaticamente e pressionado no exterior e pela indústria nacional para chegar a um consenso.

Mercados de carbono são sistemas em que entidades (países ou empresas), após serem obrigados a reduzir suas emissões de CO2, podem negociar e “vender” o cumprimento dessas obrigações. Essas plataformas já existem, na forma de mercados domésticos em países, Estados ou cidades. Mas, na COP26, busca-se um consenso para criar um mercado global, onde créditos de carbono são vendidos atravessando fronteiras.

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Indústria rejeita imposto

As conversas na COP26 ocorrem a portas fechadas, mas há observadores da sociedade civil presentes em alguns momentos, vendo sinais de que a negociação avança. “O que aparece para nós é que o Brasil está numa posição mais flexível e mais disposto a conversar”, afirma Alexandre Prado, diretor de economia do WWF Brasil.

Outros observadores apontam a mesma tendência, e uma autoridade de alto escalão do governo brasileiro afirmou ao GLOBO que o país deve ceder em sua principal reivindicação. Esse ponto de atrito é que o Brasil queria ter direito a vender créditos de carbono e receber pagamento por eles sem que sua obrigação de reduzir emissões nacionais aumentasse junto. Isso implicaria uma “dupla contagem” no acordo do clima, onde cada país tem que cumprir uma meta de cortes no CO2.

Para que o mercado de carbono atue no sentido de facilitar a diminuição conjunta de emissões entre todos os países, um país que vende créditos precisa fazer um ajuste correspondente a esses créditos em sua própria meta. No entendimento da União Europeia e de outros países industrializados, sem isso, a transação de créditos mais atrapalha do que ajuda. Mas o Brasil deve ceder.

Segundo uma autoridade do governo informou ao GLOBO, “o que se pode dizer é que o Brasil abandonou um posicionamento histórico, que agora vai garantir a contabilidade, sem risco de duplicação”.

O mercado de carbono internacional é previsto no Artigo 6 do Acordo de Paris contra a crise do clima, ainda não plenamente regulamentado. As partes sobre a criação de mercados globais são os parágrafos 6.2 e 6.4. Um trata de transações entre países e outro entre empresas.

A indústria brasileira pressiona para criação de um “pregão” de carbono não apenas porque enxerga formas de faturar com créditos, mas porque quer evitar a criação de um imposto sobre emissões no futuro. Mercados são uma das duas formas básicas de “precificar” o carbono, ou seja, criar estímulo para que setores da economia emitam menos. A segunda opção é criar uma taxa para emissão de CO2, debate que é tabu no Brasil.

Apesar disso, a ideia de um mercado sempre incomodou países em desenvolvimento, defensores do conceito das “responsabilidades comuns porém diferenciadas”. Esse princípio argumenta, corretamente, que países industrializados têm um peso de responsabilidade maior no aquecimento global porque historicamente foram aqueles que jogaram a maior parte do CO2 que ainda se encontra no ar, agravando o efeito estufa.

O Brasil, porém, é o único País de peso que ainda evocava esse conceito no debate sobre mercados, porque China e Índia avaliam que têm muito a ganhar com créditos de carbono, mesmo fazendo ajustes correspondentes em suas promessas de corte de emissões. O Brasil se vê com promessas de cortes mais concretas do que Índia e China e tem um potencial grande de gerar créditos com redução do desmatamento, por isso sua pressão pela “contagem dupla”.

Outra reivindicação controversa do Brasil é a possibilidade de transportar créditos de carbono gerados em um outro acordo climático, o Protocolo de Kyoto, para um novo mercado internacional. Esse outro tratado, vigente até 2020, tinha um esquema chamado de MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo) para comércio de emissões, mas muitos países geraram créditos sem conseguir vendê-los. A inclusão de créditos ressuscitados de Kyoto num novo mecanismo é também risco de que Paris abra exceções para “vazamentos” de emissões que complicam a ambição global.

A indústria brasileira atuou para o Brasil começar a ceder na questão. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) diz não ver problema em abrir mão da dupla contagem. E o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável, que representa empresas somando 47% do PIB nacional, pressionou para o País desistir também na questão dos créditos de Kyoto.

“A gente não quer que aquilo que foi feito de MDL fique sem vazão, mas a gente não quer contaminar a nova negociação com isso”, afirma Marina Grossi, presidente da entidade.

65 iniciativas no mundo

Para Davi Bomtempo, gerente-executivo de Meio Ambiente e Sustentabilidade da CNI, as discussões sobre dupla contagem estão mesmo caminhando rumo a um consenso. “Eu não colocaria isso como ponto de atrito, mas como um ponto de atenção no debate, porque todo mundo é pró-regulamentação desse artigo”, afirma.

Segundo a mesma autoridade do governo consultada pelo Globo, o Brasil vinha proponde que a dupla contagem fosse permitida também apenas por um “período de tolerância”, e a redução ou eliminação desse período é que teria levado a um consenso nas negociações.

Cientistas apontam que será inevitável para as grandes economias do mundo precificar o carbono para cumprir seus objetivos de redução de emissão. E a indústria quer um mercado, não a tributação.

“O melhor caminho seria via mercado regulado, porque a taxação incorre em impactos negativos em muitos aspectos, como competitividade, e no Brasil a gente já tem hoje um nível de tributação bastante elevado”, diz Bomtempo, da CNI.

A possibilidade de um novo imposto não é um espantalho. O Banco Mundial contabiliza 65 diferentes iniciativas domésticas de precificação de carbono no mundo já em operação hoje, 30 delas na forma de mercado e 35, de taxação. Alguns países ou cidades têm os dois tipos.

Projeto de lei desagrada

No Brasil, antecipar a criação de um mercado de carbono seria forma de lidar, ao menos por hora, com a rejeição que a ideia do imposto de CO2 tem no meio privado. Tanto é que a proposta de criação de um mercado de carbono doméstico, adiada sucessivas vezes, começou a tramitar na semana passada no Congresso.

A forma atual do projeto de lei, porém, desagrada à indústria e a ambientalistas, e mesmo um mercado doméstico bem montado não diminuiria o interesse por um mercado internacional, com demanda de créditos muito maior. A Associação Internacional de Comércio de Emissões (Ieta) estima que o Brasil pode gerar receitas de US$ 19 bilhões (R$ 105 bilhões) a US$ 27 bilhões (R$ 149 bilhões) até 2030 num mercado global.

Para esse potencial se materializar, porém, é preciso solucionar a equação para inserir a proteção de florestas dentro desse mercado. Como a principal fonte de emissão do Brasil hoje é o desmatamento, iniciativas para detê-lo poderiam ser geradoras de créditos de carbono muito maiores do que a indústria ou o setor de transporte.

“O problema é que, nos últimos anos, o Brasil só está aumentando a derrubada de floresta, então é difícil querer vender redução de emissões quando no conjunto o País só aumenta o desmatamento”, diz Prado, do WWF.

Mas o Brasil tem tempo hábil para trabalhar isso, acrescentou ele. Mesmo que a COP26 consiga um consenso de regras para um mercado global de carbono, devem se passar ainda alguns anos até que os ajustes necessários a sua implementação sejam feitos. Segundo o economista, se até lá o país der um sinal de comprometimento em longo prazo contra o desmate, com ações concretas para frear a derrubada de floresta, talvez o Brasil consiga gerar créditos de interesse para um mercado internacional.

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