Uso de escolas para atividades cristãs influencia estudantes? Especialistas comentam

Crucifixo ocupa ambiente escolar (Reprodução)
Adrisa De Góes – Da Revista Cenarium Amazônia

MANAUS (AM) – A cessão do espaço escolar a igrejas cristãs, para realização de cursos bíblicos em período de férias escolares, tem ganhado as tribunas legislativas e sido aceitas por governos estaduais no Brasil. É o que aconteceu no Pará, no fim de 2022, e no caso mais recente, no Estado do Amazonas, na última semana.

Especialistas ouvidos pela REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA comentam sobre os limites da laicidade e a não inclusão de outras religiões no projeto, além da preferência por uma única doutrina. Pela legislação amazonense, a proposta visa implementar a “Escola Bíblica de Férias, a fim de promover uma “cultura de paz e prevenção à violência”.

Para o teólogo, historiador e cientista da Religião, professor doutor Daniel Lima, a participação exclusiva de igrejas cristãs em projetos dessa natureza podem atingir, sobretudo, a conversão de mais pessoas para os templos, mais “fiéis” evangélicos.

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Crianças em oração (Reprodução/Pinterest)

“A Escola Bíblica de Férias nunca promoveu tais ações, sempre promoveu a edificação dos seus membros e a evangelização dos não membros. É difícil imaginar que fugirá desses objetivos. Pergunto por que o projeto não deixa aberto o convite a outras religiões para cooperarem no evento uma vez que elas também buscam promover ‘cultura de paz e prevenção da violência'”?, questiona o especialista.

Lima também contesta a possibilidade de aprovação no Legislativo de projetos que têm como base religiões de matriz africana: “Como os deputados a favor dessa lei votariam se fosse um projeto de lei para que a religião da umbanda fosse usar o espaço das escolas nas férias?”.

Educação laica

A Constituição Federal (CF) define o Brasil como um País laico e, desse modo, a educação oferecida em instituições públicas escolares deve seguir esse princípio. Ou seja, a religião não deve interferir no ambiente escolar e na construção do conhecimento, uma vez que é feita por uma série de agentes sociais.

O Observatório da Laicidade na Educação (OLE) ressalta que o cristianismo atua na sociedade e se sobrepõe às crenças minoritárias e a não crença religiosa. Para a organização, os sistemas escolares públicos transformaram-se em arena de luta entre correntes cristãs, em detrimento de outras tradições religiosas e dos que não professam religião alguma.

O professor doutor Daniel Lima (Reprodução/Arquivo Pessoal)

“[A interferência à laicidade] vem ocorrendo de variadas formas, desde o simples professor de ensino religioso, que não compreende seu papel que, ali, enquanto ensina, não deve evangelizar ou fazer proselitismo para sua religião, até a mais alta esfera do poder em Brasília, como vimos, nos últimos anos, diversos casos, onde misturavam política com religião”, salienta o professor doutor.

Uma pesquisa da Global Religion 2023, produzida pelo instituto Ipsos mostrou, neste ano, que nove em cada dez brasileiros dizem acreditar em Deus. O índice de 89% de crença coloca o País entre os 26 países do mundo que creem em um poder superior.

Estado laico

O advogado e professor de Direito Constitucional Anderson Fonseca explica que a laicidade do Estado é baseada no regime constitucional, que não coloca a sociedade em uma posição de separação relativa à religião. Ele destaca que a Carta Magna, que define o País como laico, está atenta aos fenômenos religiosos.

“A nossa Constituição se revela atenta, separada, porém, cooperativa e não confessional, solidária, tolerante em relação aos fenômenos religiosos e, dentre eles, majoritariamente à religião cristã. Desnecessário dizer, então, que a liberdade religiosa tem como um dos espaços de incidência também o ambiente escolar”, afirma o jurista.

O advogado Anderson Fonseca (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Fonseca destaca, ainda, que os princípios que regem a instrução brasileira são os princípios da igualdade de oportunidades para o acesso e o êxito escolar, da liberdade de ensino e aprendizagem, da garantia de adequado padrão de qualidade de instrução, do desenvolvimento integral dos estudantes e do preparo para o trabalho e para a cidadania.

“O Estado não pode estabelecer religiões, não pode estabelecer ou subvencionar cultos, igrejas, e etc., mas pode, na forma da lei, ter colaboração com entidades religiosas no interesse público. Da mesma maneira como nós temos o aparelho estatal, muitas vezes, se servindo de atividades ou de serviços da religiosidade”, ressalta o advogado.

Escola Bíblica

A Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas (Aleam) derrubou o veto do governador Wilson Lima (UB) e autorizou, no dia 29 de novembro deste ano, que igrejas cristãs utilizem o espaço de escolas públicas estaduais, durante o período de férias escolares, para a realização de cursos bíblicos. O chefe do Executivo havia considerado a proposta inconstitucional.

No retorno do debate no plenário, a proposta foi defendida por deputados que possuem vínculo com igrejas da vertente protestante, como o parlamentar Dan Câmara (Podemos), autor da proposta e irmão do presidente da Assembleia de Deus no Amazonas, pastor Jonatas Câmara.

Plenário Ruy Araújo na Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas (Aleam) (Divulgação/Assessoria)

“Esse projeto oportuniza a criança e o adolescente a participarem de atividades educacionais, culturais e esportivas. Não é inconstitucional, assim como não é inconstitucional o mês da Bíblica e, como no Pará, tem, o mês da escola bíblica dominical. O que é inconstitucional é o que afronta a Constituição”, defendeu.

O único a votar contra a derrubada do veto foi o deputado Sinésio Campos (PT), que afirmou que a aprovação da lei fere princípios constitucionais.

Leia mais: Vereador propõe Bíblia como recurso paradidático nas escolas de Manaus
Editado por Jefferson Ramos
Revisado por Adriana Gonzaga
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