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Bairro de SP associado à cultura italiana tem raiz negra e abrigou único quilombo do Estado
Rubens Fernandes de Souza morou no Bixiga por cerca de 50 anos - Danilo Verpa - 07.fev.23/Folhapress
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06 de maio de 2023
Da Revista Cenarium*
MANAUS – Louças, cerâmicas e talheres ajudaram a comprovar a existência do primeiro quilombo reconhecido da cidade de São Paulo, o Saracura. Os vestígios foram encontrados a três metros de profundidade durante escavações do Metrô no bairro da Bela Vista, nos arredores da avenida Paulista.
Próximo dali, na rua Almirante Marques Leão, Rubens Fernandes de Souza, 83, passou a infância. Neto de ex-escravizados, Rubão, como é conhecido, nasceu e viveu no bairro por cinco décadas. “Provavelmente sou um dos últimos quilombolas vivos da região”, diz.
Apesar de não existirem registros que comprovem a idade do quilombo ou quando foi desfeito, Rubão diz se lembrar das vilas que ali ficavam e do riacho Saracura —que deu nome à comunidade e hoje está aterrado.
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“Não tinha esse montão de prédio que tem hoje. A maioria esmagadora daquela região era tudo vila de pessoas negras, que, com o tempo, foram desalojadas e mandadas para a periferia.”
Também conhecido como Bixiga, o bairro onde foram encontrados os fragmentos do quilombo é composto atualmente por referências típicas da comunidade italiana, como cantinas e a tradicional Festa da Achiropita.
Segundo o historiador Petrônio Domingues, da Universidade Federal do Sergipe, a imigração europeia para o Brasil no século 19 fez parte de um processo de apagamento dessa presença negra.
“São Paulo simboliza o que há de mais moderno no Brasil e nesse discurso não havia lugar para ex-escravo. A população negra não só saiu das senzalas, como saiu da história”, diz.
Depois de ser preso por duas vezes, incluindo uma passagem pelo presídio do Carandiru, Rubão decidiu se dedicar à luta contra o racismo no bairro onde nasceu. Formado em direito aos 75 anos, ele criou uma associação de apoio jurídico a questões raciais e foi um dos pioneiros dentro do Mobiliza Saracura Vai-Vai, que luta para preservar a memória do bairro.
“Eu me afastei do movimento, mas continuo frequentando o Bixiga. Luto pela conservação e para os descendentes do quilombo do bairro e moradores do local tenham o direito a propriedade”, diz.
Hoje morador da Vila Dalila, na zona leste da cidade, Rubão diz que a cultura negra tem sido afastada do Bixiga. Cita como exemplo o caso da escola de samba Vai-Vai, maior vencedora do Carnaval de São Paulo e que deixou o bairro. “A Vai-Vai abriu mão da sede para as construções do Metrô. Hoje eles estão perto do Tietê.”
ma das principais lutas do Mobiliza Saracura Vai-Vai é para a estação que está sendo construída no bairro seja chamada Saracura/Vai-Vai
Especialista em ciência da religião e representante do grupo, Claudia Alexandre diz que o sítio arqueológico encontrado é um símbolo de resistência negra.
“O Metrô é uma transformação estrutural importante, mas queremos que o apagamento do patrimônio desse território negro e de uma história que segue desprezada e violentada pela política de urbanização e arquitetura não ocorra.”
Metrô de São Paulo atua com o consórcio Acciona na construção da linha 6-laranja em uma parceria público-privada. Após a descoberta do sítio arqueológico quilombola de aproximadamente 280m² durante as escavações, a A Lasca, empresa especializada em arqueologia, foi contratada para retirada e análise dos cerca de 300 objetos encontrados.
O Mobiliza Saracura Vai-Vai entrou com uma ação, acatada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan), para paralisar as obras até que seja realizada uma avaliação do solo. Na segunda-feira, 8, a preservação do local será discutida em audiência pública na Câmara Municipal.
Em nota, o Metrô diz depender da aprovação do Iphan para encaminhar os objetos encontrados para o Centro de Arqueologia de São Paulo, que poderá estudá-los. A concessionária Acciona afirma estar aberta para apoiar a comunidade em projetos futuros de preservação do patrimônio.
Presidente da Comissão da Verdade Sobre a Escravidão Negra da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil-SP), Rosana Rufino diz que os quilombos urbanos em geral não têm documentos, o que dificulta a identificação.
“O que temos são relatos, mas estamos fazendo essa busca com levantamentos, conversando com antropólogos, historiadores e arqueólogos para conseguir desenhar os quilombos que existiam na cidade de São Paulo especificamente”, diz.
Além do Bixiga, Rubão morou na vizinha Liberdade, que também tem um passado ligado à comunidade negra, embora hoje seja mais conhecida pela imigração japonesa.
O bairro concentra heranças negras como a Capela dos Aflitos, um cemitério de ex-escravizados, descoberto em 2018, e a escola de samba mais antiga da cidade, a Lavapés —fundada por Madrinha Eunice, que chegou a ganhar uma estatueta próxima a estação de metrô do bairro. .
“Ela é anterior à imigração japonesa e representa a nossa comunidade que saiu dali, mas tem uma estátua pequenininha que nem dá pra ver direito”, diz Rubão.
Outros bairros que também tiveram uma alta concentração de pessoas negras no século 20 são a Barra Funda, na região central, e o Sacomã, na zona sul.
“Na Barra Funda, a via férrea ligava a capital com o interior. E no Sacomã, a população ligada ao trabalho doméstico, sobretudo braçal, se concentrava. Iam em busca de trabalho sazonal”, diz o historiador Domingues.
O pesquisador também explica que outro bairro em São Paulo com possível passado quilombola é Pinheiros, na zona oeste. “Não há um registro oficial, mas crônicas do período colonial apontam que o bairro também foi uma região que aglutinava escravos fugidos.”
Moradores antigos de Pirituba, na zona norte, também contam histórias de que o local teria abrigado um quilombo.
Além desses, há o caso de Jabaquara, na zona sul. O bairro era rota para que escravizados em fuga chegassem até o quilombo de mesmo nome, que ficava em Santos, no litoral.
O Itesp (Instituto de Terras do Estado de São Paulo) reconhece 36 comunidades quilombolas em todo o estado e tem conhecimento de outras 26 possíveis áreas remanescentes.
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