Campo do Azulão: povos tradicionais e CPT denunciam Eneva por ameaças de morte

Vista aérea do Campo do Azulão, onde a empresa Eneva é responsável pelo empreendimento. (Reprodução/Eneva)
Márcia Guimarães – Revista Cenarium Amazônia

MANAUS (AM) – Lideranças de povos tradicionais e Comissão Pastoral da Terra (CPT) – Prelazia de Itacoatiara denunciaram a órgãos federais que pessoas ligadas à empresa Eneva S/A, responsável pela Usina Termelétrica Azulão, na Bacia do Amazonas, têm rondado comunidades próximas ao empreendimento, com armas em punho e verbalizando ameaças de morte a lideranças indígenas e de comunidades tradicionais.

A REVISTA CENARIUM teve acesso, com exclusividade, a documentos da investigação realizada pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) junto aos povos originários que vivem no entorno do “Campo do Azulão”, como é popularmente conhecida a usina termelétrica, mas os mesmos não serão divulgados, ainda, para garantir a segurança das pessoas que estão sob ameaça.

Segundo a CPT, as denúncias foram encaminhadas ao Ministério Público Federal (MPF), à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI), que estão acompanhando o caso.

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Questionado pela reportagem se confirmava o recebimento da denúncia, o MPF, por meio de sua assessoria de comunicação, informou que “confirma o recebimento das denúncias mencionadas”. Informou ainda que, “o órgão ministerial já acionou o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Amazonas e comunicou órgãos públicos sobre a situação”. 

Sob ameaça
Vista aérea do Campo de Azulão (Reprodução YouTube)

A denúncia se baseia em relatos e registros feitos pelas próprias lideranças, segundo a CPT, que acompanha o conflito entre as populações da região e a empresa. Conforme a comissão, há, ao menos, cinco lideranças ameaçadas de morte, até o momento. O empreendimento impacta diretamente populações tradicionais nos municípios de Silves e Itapiranga, no Amazonas.

Eles queimaram minha casa”, disse uma das lideranças ameaçadas ouvida pela reportagem, que terá sua identidade preservada por questões de segurança.

De acordo com informações da CPT, no dia 16 de agosto deste ano, quando membros da comissão chegavam à Comunidade Aldeia Gavião Real, em Silves, para fazer o mapeamento das aldeias, as lideranças os informaram que uma caminhonete branca, modelo Amarok, com homens que se identificaram como funcionários da Eneva, havia acabado de sair da localidade e que estavam à procura do cacique da aldeia.

Segundo os relatos, os funcionários da empresa tiraram fotos da casa do cacique, do barracão da aldeia e de outros lugares. Relataram também que não era a primeira vez que pessoas supostamente ligadas à Eneva estariam rondando a aldeia”, afirma Jorge Barros, membro da CPT – Prelazia de Itacoatiara. A reportagem ouviu um indígena morador da aldeia que confirmou esses relatos.

O relato mais grave, de acordo com Barros, foi feito por um jovem indígena, que contou que, no mês de julho deste ano, viu uma picape branca e um carro cinza cheios de homens armados próximos ao ramal de acesso à aldeia. Segundo o rapaz, ele havia ido caçar, ouviu o barulho dos carros e foi olhar quem era.

Ele conta que viu três homens saindo dos carros, com armas nas mãos, que, segundo o rapaz, eram revólveres e uma arma parecida com espingarda. Segundo o jovem, um dos carros usados pelo grupo armado era igual ao que foi visto, posteriormente, com os homens que se identificaram como funcionários da Eneva.

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Segundo Barros, o jovem disse que se escondeu no mato, uns 15 metros longe da margem da estrada de onde os carros estavam. Ele contou que ouviu os homens falarem claramente o nome do cacique da aldeia e de mais duas lideranças. Segundo a denúncia, os homens “diziam que iriam acabar com o problema e que queriam ver quem iria ter coragem para falar alguma coisa”. Esse jovem acredita que estão querendo assassinar o cacique, em virtude dele questionar a exploração do gás.

Questionada se confirmava o recebimento da denúncia de ameaças de morte e quais medidas de proteção foram tomadas, a Funai informou, por meio da assessoria de comunicação, que “recomendou ao órgão ambiental do Amazonas (Ipaam), a suspensão do curso do processo de licenciamento ambiental do empreendimento, até que seja devidamente regularizado o Componente Indígena, vez que as licenças foram emitidas sem a devida consulta ao órgão indigenista”. 

A reportagem também solicitou informações ao MPI sobre o recebimento das denúncias e medidas tomadas para a proteção das pessoas ameaçadas e comunidades locais. Não houve resposta, até o fechamento desta edição.

Tentativa de criminalização

Além das ameaças de morte, aponta Barros, há ainda uma tentativa de criminalização. “As sessões da Câmara Municipal de Silves viraram espaço de ataques contra os indígenas. Dizem que os indígenas são farsantes, que não existem indígenas na região de Silves e Itapiranga. Desqualificam a luta dos povos, o tempo todo”, afirma.

Risco ao modo de vida

A presença de poços de extração de gás próximos às comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas é ainda uma ameaça ao modo de vida desses povos tradicionais. De acordo com informações da CPT, o empreendimento está prejudicando o acesso a alimentos, oferece riscos à qualidade da água e pode destruir registros históricos.

O empreendimento, segundo a CPT, impacta sete aldeias em Silves (Curuá, 12 famílias; Gavião Real II (Conceição), 14 famílias; Livramento, 100 famílias; Mura Carará, 19 famílias, Santo Antônio, 14 famílias; São Francisco, 27 famílias; Vila Barbosa, 49 famílias) e duas em Itapiranga (Vila Izabel, 14 famílias).

Poços de gás localizados próximos a comunidades indígenas

(CPT/Itacoatiara)
(CPT/Itacoatiara)
(CPT/Itacoatiara)

A CPT informa que há blocos de gás sobrepostos a territórios onde há aldeias do povo Mura, em Silves e Itapiranga, e que há, também, indígenas dos povos Baré, Sateré-Mawé e Munduruku que vivem nessas aldeias. “Os blocos de gás estão sobrepostos a estes territórios, a diversos sítios arqueológicos, à área do Acordo de Pesca, Portaria Ibama n.º 2 de 28/01/2008, a cemitérios indígenas, ao Aquífero Alter do Chão, e afetam diretamente os rios Urubu, Amazonas e Uatumã”, disse Jorge.

Os povos vivem da caça, da pesca e do extrativismo. A Terra para eles é ‘mãe e filha’, uma troca mútua de cuidado. Se a exploração contaminar as águas, o ar, o chão, a floresta, como vão sobreviver?”, acrescenta o integrante da CPT, referindo-se à ameaça ao modo de vida dos povos tradicionais.

Achado arqueológico. (CPT Itacoatiara)

Ainda de acordo com Jorge Barros, os indígenas têm relatado que a fauna e a flora das regiões impactadas hoje pela exploração do gás eram áreas muito ricas, mas, que, desde 2022, tem se observado que os animais estão fugindo e que a floração das espécies nativas não é mais como antes.

Contam também que, desde quando as máquinas começaram a trabalhar e o fogo da queima do gás começou a aparecer continuamente, as caças e os pássaros estão sumindo, e não se acha mais quase nada de fruta no mato, que essa situação piorou, do mês de junho de 2023 para cá. Os barulhos ficaram mais intensos”, destaca o membro da CPT.

Quilombolas e ribeirinhos

Ainda segundo a CPT, as comunidades tradicionais que residem às margens do Lago do Canaçari, dos rios Sanabaní e Urubu, dos lagos do Anebá e Curuá e de todos os igarapés e mananciais, e às margens da Rodovia AM-363 também são afetadas pelos mesmos problemas enfrentados pelos indígenas.

Quanto ao povo quilombola, os lagos e rios dessa região são quase todos interligados. No Lago de Serpa, no município de Itacoatiara, existe uma comunidade quilombola já certificada pela Fundação Palmares e cujo território encontra-se em processo de titulação. O Lago de Serpa é interligado ao Rio Urubu, Rio Amazonas e outros igarapés afetados pela exploração do gás, dessa forma essa comunidade quilombola também é afetada”, disse Barros.

Favorecimento

A CPT e lideranças locais também acreditam em favorecimento do poder público à empresa. “Acompanhamos essa realidade dos povos com muita preocupação, pois o que se percebe é que há um possível favorecimento e apoio do Poder Público, através do Ipaam [Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas], da Comissão de Geodiversidade, Recursos Hídricos, Minas, Gás, Energia e Saneamento da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, na pessoa do deputado Sinésio Campos, de vereadores e da prefeitura do município de Silves ao projeto de exploração de gás e óleo da Eneva”, afirma Jorge Barros, membro da CPT – Prelazia de Itacoatiara, que acompanha o conflito, desde o início.

Para Jorge, “são muitas as ilegalidades e violações de direitos” e pode-se afirmar que a exploração de gás nessa região do Amazonas “é um dos maiores erros já cometidos pelo Estado brasileiro”. “Não se tem dúvidas que há interesse político em questão, pois um projeto como esse, que coloca em risco a vida de tantos povos e de todo um ecossistema sem nenhuma timidez, só pode prosperar se houver o apoio do Estado”, disse.

Outro Lado

Procurada pela reportagem para se manifestar sobre os relatos de ameaças de morte, a Eneva S/A informou, por meio de nota enviada por sua assessoria de imprensa, que “repudia toda e qualquer prática violenta, seja de funcionários diretos, indiretos e/ou fornecedores”. “Valorizamos as regiões em que estamos presentes e mantemos um diálogo transparente e pacífico com as comunidades locais. Mantemos um processo periódico de comunicação com os representantes locais, marcado pela abordagem totalmente pacífica e sem nunca ter identificado incidente de qualquer natureza”, diz a empresa, na nota.

A Eneva informou ainda que “destaca que todos os processos de licenciamentos de seus empreendimentos na Amazônia cumprem rigorosamente as leis e os regulamentos”. Também, segundo a empresa, seus empreendimentos “permitem contribuir com o desenvolvimento, com a inegociável preservação da vida e do meio ambiente, com a geração de empregos e oportunidades e com o alinhamento às novas matrizes econômicas para a região”.

A Eneva encerra sua nota, dizendo que é a “maior operadora privada de gás natural onshore do Brasil e empresa integrada de energia”, que “segue as melhores práticas de governança, está listada no Novo Mercado da B3 desde 2007 e integra a carteira do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE B3), sendo listada entre as companhias com o melhor desempenho em práticas de sustentabilidade em suas operações. A companhia é signatária do Pacto Global das Nações Unidas (ONU)”.

Ipaam

Citado pela denúncia da CPT como um órgão que atua em favorecimento da empresa Eneva, o Ipaam também foi procurado pela reportagem e informou, por meio de nota, que “atua de maneira isenta e em obediência à legalidade”. Ainda segundo o órgão, “o licenciamento ambiental segue rigorosa instrução administrativa com procedimento legal previamente estabelecido, que impede qualquer tipo de favorecimento”.

O Ipaam esclarece, ainda, que desconhece a existência de terras indígenas e comunidades tradicionais próximas ao empreendimento, pois durante a instrução administrativa não foi identificado nenhum registro. As análises técnicas prévias realizadas no perímetro não apontam a existência de Terras Indígenas (TI) na localidade, o que vem a ser um ponto primordial para a concessão de licenças ambientais”, concluiu o órgão, na nota.

A CPT explica que não há terras demarcadas, mas há territórios historicamente ocupados por indígenas. Documentos da Funai atestam a presença das comunidades indígenas e que há um processo de homologação do território em andamento.

A reportagem também tentou ouvir o deputado Sinésio Campos e a Prefeitura de Silves sobre a acusação de favorecimento. Não houve retorno até o fechamento desta edição.

Esta reportagem foi originalmente publicada na versão física da REVISTA CENARIUM, cujo tema é “Amazônia em Ebulição”. Para assinar, basta acessar o link.

Edição nº 39 da REVISTA CENARIUM, versão física. (Capa: Hugo Moura)
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