‘Canetada de ouro’: as consequências da abertura de garimpo, no AM, por general bolsonarista

Município amazonense concentra maior população indígena do Brasil. (Christian Braga / Greenpeace)

Nauzila Campos – Da Revista Cenarium

MANAUS – Que São Gabriel da Cachoeira é o município mais indígena do Brasil, talvez você já saiba. Quase 77% da população da cidade, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – Censo 2010, é formada por integrantes de diferentes etnias (23 povos, ao total). O que não se fala muito é sobre o quanto os são-gabrielenses estão presentes como vítimas nos maiores índices nacionais de mortalidade infantil, suicídio de jovens – dez vezes maior que a média nacional – e violência – o município é rota do narcotráfico internacional, pela localização de fronteira no mapa.

Inevitavelmente, a existência dos povos tradicionais, residentes milenares da “cabeça do cachorro”, é ameaçada com essa realidade. E uma nova afronta preocupa, ainda mais, uma das populações mais negligenciadas do Amazonas.

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Em reportagem do jornal Folha de São Paulo, foi relatada a “canetada do garimpo” de Augusto Heleno, ministro de Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e secretário-executivo do Conselho de Defesa – além de homem de alta confiança do presidente Jair Bolsonaro -, que autoriza sete projetos de exploração de ouro em São Gabriel da Cachoeira. O alvo no mapa é uma das regiões amazônicas mais preservadas no território brasileiro; não coincidentemente, o maior lar de populações indígenas no País.

Como ministro do GSI, é função de Heleno, permitida por lei, decidir a respeito de atividades econômicas envolvendo a faixa de fronteira do Brasil (cerca de 150 quilômetros de largura e muita responsabilidade), após parecer específico da Agência Nacional de Mineração (ANM).

Apesar de a autorização do GSI não ser diretamente relacionada à exploração de terras indígenas, a estratégia de alcançá-las tem grande potencial no projeto. Na verdade, a região já sofre com garimpo ilegal, há décadas, tanto em terras indígenas quanto em locais de preservação ambiental. Tais atividades ilícitas vêm, ao longo dos anos, sendo combatidas por associações de proteção indígena, Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública, entre outras instituições.

“Uma série de absurdos”

O professor de Direito Constitucional e doutorando na Universidade de São Paulo (USP), Denizom Oliveira, estudioso do tema e da região, classifica como “uma série de absurdos” o que vem acontecendo em relação à proteção dos povos indígenas e meio ambiente na Amazônia Brasileira.

“Muitas pessoas, principalmente garimpeiros, levam falsas informações para convencer populações indígenas a se aliar a eles. E isso traz uma enganosa crença de que há indígenas favoráveis ao processo de exploração do minério. Mas, o que existe é a falsa promessa de que os indígenas serão beneficiados com o projeto e vão participar do processo – quando, na verdade, serão usados para favorecer a aprovação de lei no Congresso Nacional que, efetivamente, autorize a exploração de riquezas minerais em terras indígenas”, disse.

Esta é a única previsão constitucional para que as terras tradicionais sejam exploradas dessa forma (art. 231, parágrafo 3º da Constituição Federal). Por enquanto, a exploração dentro das terras indígenas é inconstitucional. Mas, as atividades em regiões próximas também trazem consequências. Para o antropólogo Lino João, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), “como São Gabriel da Cachoeira é território eminentemente indígena, qualquer autorização nessas dimensões (sobre garimpo) vai incidir em território indígena. Este é um experimento para abrir mineração em território indígena, fato que é uma das propostas do presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados, que sempre se posicionaram contra os indígenas”.

Ele lembra que esta autorização do ministro não é um fato isolado e que a “política anti-indígena” também autorizou 81 projetos de exploração mineral no Brasil. “A consequência vai ser devastação. General Heleno está autorizando a crise socioambiental na região indígena”, reforçou.

André Baniwa, de 50 anos, líder indígena desde 1992 em São Gabriel da Cachoeira, já viveu a experiência da invasão de garimpeiros nos anos 1970 e 1980, e não tem boas lembranças. Com a atual gestão do governo federal, ele diz reviver os abusos sofridos: “ele [Heleno] tem atuado contra nós. É fora das áreas indígenas, mas é muito perto. Vai ter consequência social, contaminação de água, peixe… e, consequentemente, dos seres humanos. Essa é uma última tentativa do governo para enfraquecer os direitos indígenas”.

A cidade mais indígena do Brasil e as constantes ameaças à população tradicional. (Fabrício Corsi Arias)

O professor constitucionalista destaca, ainda, a falta de consulta à população interessada, caracterizando como arbitrária a decisão do ministro Heleno. “Este assunto de exploração ilegal já foi pauta na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. E a Comissão já apontou que o Brasil viola direitos dos povos indígenas e ambientais nessa exploração de ouro, nióbio, na Região do Alto Rio Negro. Há todo um contexto de deterioração dos povos indígenas e de ameaça a áreas ambientalmente protegidas. Tudo isso é muito grave e pode ser objeto de contestação no Supremo Tribunal Federal. Esperamos que as autoridades, ao menos, suspendam o ato administrativo”, completou Denizom Oliveira.

Autoritarismo

O autoritarismo e a falta de conhecimento sobre o município são um dos pontos de indignação em nota oficial publicada pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), que representa as 23 etnias residentes em São Gabriel da Cachoeira:

“Nós, que habitamos essa região há mais de 3 mil anos, em dez terras indígenas demarcadas, manifestamos nossa indignação com a postura do general Heleno, que demonstra estar fazendo uma pressão política a favor dos interesses empresariais da mineração e do garimpo.

A assessoria jurídica da Foirn está analisando os processos mencionados na reportagem da Folha de São Paulo e tomará todas as atitudes cabíveis e legais para não permitir que a região mais preservada da Amazônia seja ameaçada pela política predatória do atual governo.

(…) Ao invés de autorizar que empresas façam pesquisa de extração de ouro em nossos territórios, o que só trará poluição, degradação ambiental e ainda maior injustiça social, as autoridades do governo federal deveriam conhecer a realidade local e nos apoiar a fomentar a economia indígena sustentável, que gera renda, trabalho e conserva os benefícios da floresta em pé”.

Confira a nota da Foirn em inteiro teor aqui.

Já a Agência Nacional de Mineração (ANM) afirmou em nota que “não aprovará o requerimento de qualquer título minerário se este incidir em área onerada ou em área com qualquer outro bloqueio legal”.

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