Cartão-postal de Manaus requer proteção: SOS Encontro das Águas

Imagem aérea do Encontro das Águas (Ricardo Oliveira/Agência Amazônia)
Ademir Ramos – Especial para Revista Cenarium Amazônia**

MANAUS (AM) – A publicação faz parte das celebrações dos 13 anos do Tombamento do Encontro das Águas, aprovado no dia 4 de novembro de 2010, na 65ª reunião do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), presidida por Luiz Fernando de Almeida, com referendo do poeta Thiago de Mello, que, junto com o Movimento SOS Encontro das Águas, planejava transformar esse bem em Patrimônio Mundial Cultural e Natural com apoio da ONU/Unesco, sendo contrariado pelo Governo do Amazonas.

Os apontamentos coletados sobre o Encontro das Águas dos Rios Negro e Solimões, envoltos dos municípios de Manaus, Iranduba e Careiro da Várzea, buscam guarida em nossa Carta Magna, por entender que o objeto em disputa no Supremo Tribunal Federal (STF) não deve ser negligenciado em favor da construção do Porto das Lajes, como defende em juízo o governo do Amazonas, ignorando juridicamente o Encontro das Águas como marca identitária da ação e da memória dos diferentes grupos étnicos, sociais e culturais formadores do povo do Amazonas e do Brasil nos termos do Art. 216 da Constituição Federal.

O enunciado faz-se necessário para que possamos mergulhar nesse universo da cultura amazônica, como paisagem “fluvio-florestal” composta de rio, floresta e devaneio, como observou o saudoso geógrafo Orlando Valverde: “Impossibilitado de viajar a longas distâncias, o ribeirinho idealiza a distância na profundidade do rio ou da floresta, criando um mundo da recordação e das encantarias. Ou seja, viajando para dentro de si mesmo, quando a memória é sua barca; ou para dentro do rio ou da floresta, quando a imaginação é sua asa” (LOUREIRO. In: PINHEIRO, 2021, p. 19-20).

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A questão posta remete-nos à obra de Lévi-Strauss referente ao Mito e Significado, a formular a seguinte indagação: Onde acaba a mitologia e onde começa a História? Qualquer resposta a ser dada está além de uma concepção positivista formal que queira reduzir a cultura à natureza ou vice-versa. Trata-se, na verdade, de uma História “sem arquivos, sem documentos escritos, apenas existe uma tradição verbal” (LÉVI-STRAUS (1979), p. 58).

Essa tradição tem coerência e obedece a determinada ordem lógica, como o próprio autor de “Mito e Significado” demonstra em sua obra supracitada. O rio, a floresta e o devaneio estão representados no universo identitário das culturas, não só dos ribeirinhos como também dos citadinos, das comunidades tradicionais e na mitologia dos povos indígenas, em particular dos Desâna, do noroeste do Amazonas, da família linguística Tukano, que também viajam miticamente pelo caudaloso rio Amazonas, dando origem à humanidade, quando o mundo ainda não existia, como confirma o trecho: “Ëmëkho sulãn Panlãmin [um dos mitos fundadores dos Desâna] começou a dividir a humanidade à medida que ia saindo à superfície da terra. Pois isso em Ipanoré [cachoeira localizada no Alto Rio Negro/AM] há tantos buracos nas pedras. A Pahmelin gahsilu continuou no fundo da água, não veio à tona. Somente aquelas tribos saíram à superfície da terra. Cada qual saiu acompanhado de sua mulher, formando uma fila.” (KUMU E KENHHÍRI, 1980, p. 73).

Quanto à viagem do frei Gaspar de Carvajal, ela tem outro sentido e representa os tentáculos do processo de colonização, conforme consta em seu Relatório de 1542 sobre o famoso rio grande descoberto pelo capitão Francisco Orellana. No enfrentamento contra os povos indígenas e seus territórios, o escriba da expedição Orellana viu e conceituou o Encontro das Águas com a impávida atitude do colonizador: “Neste mesmo dia [véspera da Santíssima Trindade], saindo dali, prosseguimos a viagem, vimos a boca de outro grande rio que entrava pelo que navegávamos pela margem esquerda, cuja água era negra como tinta e, por isso, o denominamos rio Negro. Suas águas corriam tanto e com tanta ferocidade que por mais de vinte léguas faziam uma faixa na outra água, sem com ela misturar-se.” (GUILHERMO, 1992, p. 69).

Mas foi o poeta cearense Quintino Cunha que viu, sentiu e se deixou seduzir pelo significado estético, simbólico e lírico do Encontro das Águas, imprimindo no universo literário do Amazonas uma das belíssimas exaltações a este Cartão-Postal do povo de Manaus, fonte de riqueza, prazer e valor.

Com a mesma grandeza e significado, o renomado cronista Fernando Sabino viu e sentiu o valor extraordinário desse bem, não mais só como expressão da materialidade da natureza, mas como unidade relacional da vida que pulsa, da cultura que nos representa e da nossa ancestralidade a povoar o imaginário da gente e de todos que venham admirá-lo na sua totalidade: “Dois rios que se juntam, que tem isso de tão extraordinário? (…). Seria apenas uma curiosidade a mais, se de súbito não assumisse aos meus olhos a proporções de um símbolo. Tudo aqui parece encerrar um sentido simbólico: os rios, as florestas, os animais e as plantas, os próprios homens. Aqui, a natureza nos dá a sensação vertiginosa de que um dia fomos deuses. Aqui, a alma se expande até perder-se no vazio onde o espaço e o tempo se confundem, para reencontrar-se numa vida além da vida, em que tudo se harmoniza – tempo e espaço, civilização e natureza, homens e deuses – numa perfeita integração.” (SABINO, 1977, p. 122-123).

Além das ciências naturais, cultura, história e linguagem, o Encontro das Águas pela grandeza de sua materialidade também é estudado pela geociência, como fez a professora Elena Franzin, do departamento de geociência do Instituto de Ciência Exatas da Universidade Federal do Amazonas, com publicação na Revista Brasileira de Geociência referente à morfologia desse bem cultural, vejamos: “O Rio Amazonas, em território brasileiro, nasce no encontro das águas negras do Rio Negro e das águas brancas do Solimões, próximo à cidade de Manaus” (FRANZIN, 2011, p. 587).

Mas foi Luiz Fernando de Almeida, o então presidente do IPHAN, depois de amplo debate na reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, que aprovou por unanimidade o Tombamento do Encontro da Águas dos Rios Negro e Solimões com toda área envolta situada no Portal de Manaus, capital do Amazonas, determinando de pronto sua inscrição nos Livros de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, qualificado, dessa forma, como Patrimônio Cultural Brasileiro nos termos do Art. 216 da Constituição Federal, por sua importância e valor conforme fez constar em Ata: “A importância simbólica do Encontro das Águas é visível em alguns emblemas contemporâneos da sociedade amazonense: com referências nos brasões do Estado do Amazonas, da Universidade Federal do Amazonas, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e do Município de Manaus.” (ATA do IPHAN 4/11/2010).

O Tombamento está consumado requer ação contínua do IPHAN para proteção desse Bem, recolocando as Placas de aviso em suas fronteiras demarcatórias seguido de campanhas publicitárias em prol da integridade desse Cartão-Postal de Manaus, quanto o reconhecimento da ONU/Unesco a discussão está em curso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ATA do CCPC/IPHAN. Rio de Janeiro: 4/11/2010.
BRASIL, Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019.
PINHEIRO, Harald Sá Peixoto. Mitopoética dos Muyraquitãs, Porandubas e Moronguetás: ensaios de antropologia, Estética e Etnologia Amazônica. São Paulo: Alexa Cultural [Manaus]: Edua, 2021.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e Significado. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1979 (Edições 70).
GIUCCI, Guilhermo. Frei Gaspar de Carvajal. São Paulo: Scrita [Brasília, DF]: Consejeria de Educación de la Embajada de Espanha. 1992 (Coleção – Colleccion Orellana; 6).
FRANZINELLI, Elena. Características morfológicas da confluência dos rios Negro e Solimões (Amazonas, Brasil). https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2317-48892011000400587, consultado no dia 20/4/2021.
SABINO, Fernando. O Encontro das Águas: crônica irreverente de uma cidade tropical. Rio de Janeiro, Record, 1977.
https://www.pensador.com/frase/ODMwMTY1/, consultado no dia 19 de abril de 2021.
KUMU, Umúsin Panlõn; KENHÍRI, Tolamãn. A mitologia heroica dos índios Desâna: antes o mundo não existia. [Introdução de Berta G. Ribeiro]. São Paulo: Livraria Cultura Editora, 1980.

Leia mais: No AM, São Gabriel da Cachoeira oferece etnoturismo com cultura e história de indígenas

(*) É professor, antropólogo e coordenador do Movimento SOS Encontro das Águas e do NCPAM do Dpto. de Ciências Sociais da Ufam E-mail: [email protected]

(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.

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