‘Chega de lendas, vamos faturar!’, anúncio de 1972 ‘vendia’ a Amazônia ao capital predatório

Nos anos 1960-1970, a Amazônia era anunciada, oficialmente, como um 'depósito' de riquezas a céu aberto e que era 'só vir pegar' (Reprodução/Realidade)
Mencius Melo – Da Revista Cenarium

MANAUS – ‘Chega de lendas, vamos faturar!’. A frase pertence ao anúncio do Banco da Amazônia (Basa) em 1972. O veículo de comunicação era a Revista Realidade. No governo estava o general ditador Emílio Garrastazu Médici. Assim, a Amazônia foi apresentada ao mercado econômico brasileiro. Passados mais de 50 anos, a realidade dos Yanomami e os altos índices de desmatamento mantêm o maior bioma brasileiro no foco de um mercado agressivo que envolve queimadas, envenenamentos por mercúrio e mortes. A CENARIUM conversou com profissionais para saber o que mudou na visão e prática de quem divulga a Amazônia comercialmente.

Revista Realidade (Reprodução/Realidade)

Para João Paulo Faria, profissional de Marketing Digital formado pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) de São Paulo, as peças retratam um panorama de época. “São propagandas que retratam um Brasil de 50 anos atrás, com uma visão totalmente mercantilista sobre a Amazônia, uma visão que, hoje, jamais teria qualquer chance de êxito, comercialmente falando”, observou. “É curioso notar que, em um dos cartazes, o mapa do Brasil retrata o espaço amazônico como um canteiro de obras a ser construído em um Brasil a ser desbravado”, notou.

A abertura da Transamazônica em plena Floresta Amazônica nos anos 1970. Na esteira dela, uma política de ocupação que culminou com altos níveis de desmatamento da floresta (Reprodução/PSTU)

Outro detalhe é a forma como as peças divulgavam “os produtos” da floresta, percebeu João Paulo. “Anunciavam a floresta como um depósito de madeira, e isso, de certa forma, ajudou a moldar a visão de que a floresta podia vir a baixo, pois era lucrativo derrubar árvores centenárias para o comércio madeireiro. Em outro anúncio, a transamazônica é chamada de “pista do ouro“, ou seja, à luz do marketing atual, são verdadeiros monstros, mas, foram ideias assim que, infelizmente, ajudaram a construir, ou melhor, desconstruir a Amazônia aos olhos dos brasileiros”, lamentou.

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O publicitário João Paulo Faria diz que, hoje, dificilmente, os comerciais produzidos sobre a Amazônia, nos anos 1960-1970, teriam êxito no mercado (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Drogas do sertão

O sociólogo Luiz Antônio faz uma leitura histórica da Amazônia no contexto de Brasil. “A Amazônia se globalizou primeiro, até que o restante do Brasil. Porque nos primeiros anos de ocupação do território brasileiro, a floresta era a fornecedora das ‘drogas do sertão’, isso em 1600. Eram produtos extraídos e enviados para a Europa. Eram couros, peles, caças, óleos e, posteriormente, madeira, seringa, pau-brasil, e assim por diante. A Amazônia ocupou esse papel”, destacou.

O cientista observa: “Ao Brasil Central ou do Sul e Sudeste, a Amazônia, até o século 18, era uma incógnita, ela precisava ser guardada, protegida, mas, no desenvolvimento do capitalismo brasileiro, a Amazônia não tinha papel, não tinha função. Isso até meados dos anos 1960, quando as revoluções de esquerda, no mundo, começaram a eclodir, principalmente, no campo e derivavam para as cidades. A ‘Guerrilha do Araguaia’ deixou isso bem claro“, contextualizou.

O sociólogo Luiz Antônio aponta que o capitalismo brasileiro passou a ver função na Amazônia a partir dos anos 1960, tendo como ponto de partida a visão militarista para a região (Reprodução/Arquivo Pessoal)

‘Limpar’ a Amazônia

Mesmo com o esforço militar em “integrar para não entregar“, lema que marcou a atenção militarista para a região, a tarefa trazia distorções e não era simples. “O problema é que, politicamente, historicamente e economicamente era muito caro integrar a região seguindo esses princípios, então, a primeira tarefa era ‘limpar’ a floresta. Era preciso tirar a condição de ‘inferno’ da Amazônia. E como fazer isso? Desmatando”, concluiu Luiz Antônio.

O sociólogo chega às fórmulas usadas para esse “integrar”: “Financiamento público dos bancos com a garantia que empresários fossem desmatar e montar atividades econômicas produtivas. A Amazônia era vista como fornecedora de matéria-prima abundante, disponível e de baixo custo. Isso perdurou até os anos 1990. O Incra entregava um lote para um assentado, condicionava que o assentado ‘limpasse’ o terreno. O Incra vinha fiscalizar e se encontrasse o terreno desmatado, o assentado recebia o documento da terra. Essa área era chamada de área beneficiada. Isso só acabou com o advento da Eco 92“, recordou.

Colono posa para foto com toras de madeira de árvores derrubadas a partir da abertura de estradas na Amazônia. Estradas que serviram para o processo de ‘colonização’ da região (Reprodução/ChicoTerra)

Agora, ‘criminosos’

Com essa mudança de postura, aqueles que passaram décadas desmatando a floresta, passaram a ser tratados como criminosos, por terem desmatado a Amazônia. A partir dessas mudanças de legislação, passaram à condição de criminosos e perderam o direito à terra. Deixaram de ter acesso à reforma agrária”, afirmou. “Essas realidades não acabaram e perduram. O sul do Amazonas é um exemplo dessa visão distorcida que sempre marcou a região“, finalizou Luiz Antônio.

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