Crônicas do Cotidiano: ‘Eu, vi e ouvi’

Dizem que engorda, que atrofia, que envelhece. No entanto, esquecem de dizer que a poltrona é um lugar privilegiado para a contemplação, para a reflexão, para a indignação e para um diálogo com o outro e o mundo. Não é, somente, um lugar para um cochilo; é, portanto, recanto de um certo tipo da “vita activa”. E foi sentado em uma delas que ouvi e vi do José Celso, dramaturgo brasileiro que nos deixou recentemente: “ninguém aguenta mais os de baixo aguentando esses poucos vagabundos que levaram o capitalismo lá para cima!” E, no mesmo documentário do CURTA, Fernanda Montenegro, mulher poderosa e afirmativa, nos convencendo a resistir: “nós vamos sair disso! É preciso viver muito para viver esse sobe e desce da vida brasileira. Vamos sair para trabalhar e aguentar o outro, que também nos aguenta”.

Os dois, mais longevos, viram mais coisas que eu (um virou luz, Fernanda, firme e forte, está em cartaz fazendo uma releitura da “A Cerimônia do Adeus”, de Simone de Beauvoir, bem adequada para empoderar as mulheres). Inspirado neles, com os meus 75 anos, fiz desfilar na minha mente momentos significativos que vivi: captei pelo rádio o momento em que “Getúlio deixava a vida para entrar na história”; assombrei-me, como todas as crianças, vendo os aviões da Força Aérea darem rasantes sobre as casas da minha Itacoatiara (AM) e só depois soubemos que os militares da Aeronáutica, rebelados em Jacareacanga, queriam impedir a posse de Juscelino Kubitschek; acompanhei a renúncia do descontrolado Jânio Quadros, que pensava voltar nos braço do povo e gerou a crise sem precedentes, que resultou no Golpe militar de 31 de março de 1964.

Este, a maior tragédia nacional que vivi de perto: ver os livros da biblioteca do colégio onde estudava em sacos verdes do Exército sendo confiscados e os professores suspeitos de esquerdismo; vi pessoas conhecidas sumirem da noite para o dia, umas voltavam e outras não; mas vi, também, pessoas contentes e agradecidas a Deus porque estávamos livres da Corrupção e do Comunismo. E como a ditadura foi longa, ao longo do meu crescimento só vi mais ódio e desfaçatez e comecei a entender que tudo aquilo fazia parte de um programa da Guerra Fria e de dominação imperialista; e quanto mais me embrenhava em conhecer, mas me envolvia e passava, também, a ser um dos suspeitos, dos vigiados em sala de aula, dos fichados e possíveis vítimas do processo de moer gente. Vi o país ressurgir com as Diretas Já, a nossa empolgação nos comícios que cada vez se tornavam maiores. Ao passar, recentemente, pelo Vale do Anhangabaú/SP, fiz questão de conferir se ainda estava intata a esquina onde fiquei, com meu compadre Rui, naquele comício memorável das Diretas; mas tivemos que aceitar a derrota e chorar de vergonha do nosso Parlamento.

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E depois de Tancredo, dos fiscais do Sarney, vi o país tomar rumo, pensar na pobreza, iniciar programas para debelar as desigualdades e toda essa euforia desaguar na Constituinte e, por consequência, na Constituição Cidadã. Recobramos os ânimos, mas a insatisfação permanecia no ar: um cheiro forte de golpismo ao estilo do 142, o tal “poder moderador”, ameaçando, ora pedindo perdão para atos passados e encobrindo responsabilidades, enquanto o “ovo da serpente” continuava sendo chocado nos quartéis e em alguns redutos religiosos que vivem da manipulação da fé e da consciência dos humildes ou da cobiça dos que se acham merecedores das dádivas de Deus, inclusive, para apropriar-se do Estado. Vi famílias se dilacerarem, partidas ao meio, nas adorações a ídolos com pés de barro e vi os pobres, a mando de patrões e de líderes religiosos celerados, clamarem aos céus por golpes de estado e pela destruição de tudo que foi construído.

Estamos, assim, recomeçando, enquanto a podridão de uma elite sem escrúpulos se revela, o nosso jornalismo se contenta em enaltecer o 1% de “vagabundos”, dos quais nos falou José Celso, pregando o caos econômico e vociferando preconceito contra dirigentes e contra as políticas públicas que nos permitam sair do atoleiro. É nessa hora que a poltrona vira um lugar penoso, como se gritássemos sozinhos para um écran, que responde com as bombas da desgraça, jogadas por Israel sobre crianças e mulheres de Gaza, onde um sanguinário sacrilegamente flerta com o genocídio de Palestinos, e ainda convida dirigentes públicos da extrema-direita de outros países para observação e treinamento, seja em Israel ou em qualquer parte do mundo. O melhor é crer e lutar para sairmos disto novamente, independente do lugar onde se esteja!

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(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

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