Crônicas do Cotidiano: ‘Sylva primaeva’ (Selva Primitiva)

“O que se está deteriorando e destruindo é a gigantesca floresta amazônica, batizada de Hileia, por Humboldt e tida como a sylva primaeva, a maior e a mais exuberante floresta que se conhece..” (Darcy Ribeiro. Testemunho: Darcy Ribeiro por ele mesmo. RJ: Record, 2022, p.109). E aqui vivem os sobreviventes dos muitos povos que Darcy verdadeiramente amou e com eles viveu intensamente. Vivem, também, milhares de homens e mulheres, que nem sempre pacificamente conviveram ao lado dos indígenas, mas construíram, juntos, uma história bonita de enlevo com a natureza, com o beiradão dos rios. Vivem, ainda, os migrados do mundo inteiro, no interior e nas cidades, estas, ímãs que se tornaram formigueiros cosmopolitas e ligados a muitas outras ilusões.

Assim, completamos 200 Anos de adesão ao Brasil nesta semana, no dia 15 de agosto. Não houve festa nesse dia (o dia do mais recente apagão e feriado, no Estado do Pará). Não houve discursos e poucos lembraram. Por dever de ofício, por aqui ninguém! A casta dirigente sempre teve outros interesses; o povo pouco se importa com esse orgulho próprio e uns até dizem que isso se deve ao “jeitão” internacionalista dos Amazônidas. Porém, é fato histórico, e foi cruel. No dia 15 de agosto de 1823, o então Estado do Grão Pará, do qual fazíamos parte, se rende às forças do Império do Brasil e adere ao novo país, amortecendo os seus desejos de autonomia. Nos entregamos ao destino e ao abandono que não cessa, apesar de alguns lampejos de boa vontade e outros muitos de hipocrisia. Uns podem até dizer que é “mi, mi, mi”, “síndrome de coitadinho”, “coisa de cabano alienado” ou mesmo “primitivismo”. No entanto, ao compulsar nossa história e avaliar as forças que nos submetem a vários enganos, sobra resistência, sobra resiliência para o conviver com o imponderável, sobra a esperança num mundo melhor, no país que abraçamos.

A Amazônia vem se diluindo em seus encantos, dessacralizada pela ignorância. Como lugar de passagem, passam os ventos carregando os rios voadores, passam dois grandes rios do mundo (Rio Solimões e Rio Negro), arrastando um imenso mar de água doce para o oceano, fazendo inveja aos estrangeiros, como no poema de Quintino Cunha, “Encontro das Águas”: “Se estes dois rios fôssemos, Maria,/Todas as vezes que nos encontramos,/Que Amazonas de amor não sairia/ De mim, de ti, de nós que nos amamos!” Levaram o cacau, levaram o café, levaram o algodão, levaram as seringueiras, nossas madeiras nobres, estão levando o guaraná e o açaí. Levaram a Serra do Navio e deixaram um buraco imenso chamado Amapá; estão levando a Serra dos Carajás; fizeram crateras profundas em busca de ouro nas terras indígenas e em áreas de fronteiras nas quais, num certo tempo, um tal general as liberou. Não só prospectam, mas se preparam para arrancar o petróleo na foz do Amazonas e, quem sabe, sujar as franjas de corais.

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Desfigurada pelas queimadas, pela grilagem e furada pelas patas de boi, em parte transformada em capinzal estéril, a Amazônia é negociada na bolsa internacional de “sequestro de carbono” como salvação do discurso ambiental, até agora, mais conveniente às potências internacionais. Já o Brasil volta a falar em integração, incluir a Amazônia no projeto de reindustrialização, voltado para o aproveitamento da sua biodiversidade, depois de acabar com os incentivos fiscais das suas agências de desenvolvimento. As cifras prometidas são grandes, abrem os olhares cobiçosos dos lobbies da indústria e da ciência nacional e denunciam o novo bote, como em tantas outras vezes, sob o pretexto da “falta de expertise” e da “propalada pouca ciência” nas instituições universitárias e de pesquisa locais. Assim, alimenta-se o processo de colonização, que parece não ter fim!

Os projetos regionais próprios dão lugar àqueles forjados nas conveniências nacionais, que fenecem por vício de origem, por falta de enraizamento e de correção de rumos, o que todo projeto de transformação social e econômica precisa ter. Os arautos dessas “grandes ideias” desprezam a inteligência dos autóctones, desrespeitam as forças da natureza e a nossa história. Tudo para manter a Amazônia na menoridade!

Walmir de Albuquerque Barbosa é jornalista profissional.

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(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

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