Crônicas do Cotidiano: ‘Vita activa’, enquanto dure

“A busca pela imortalidade, pela glória imortal, é, segundo Arendt, ‘a fonte e o centro da vita activa’. O ser humano conquista a sua imortalidade no palco do político. Em contrapartida, o objetivo da vita contemplativa não é, segundo Arendt, o persistir e durar no tempo, mas a experiência do eterno, que transcende tanto o tempo como também o mundo circundante. Ela ocorre fora das circunstâncias humanas; ou seja, fora do político. Contudo, nenhum ser humano consegue, prossegue Arendt, demorar-se na experiência do eterno. Ele precisa retornar ao seu mundo circundante” (Byung-Chul Han. Vita contemplativa: ou sobre a inatividade. RJ: Vozes, p.145, 2023). Com os meus agradecimentos ao filósofo coreano, de formação alemã, pela bela síntese de um texto memorável de Hannah Arendt – a Condição Humana (1981,1a. Edição brasileira) marcou o meu retorno ao lugarzinho que espero ter conquistado no coração dos leitores. Não é um palco político-partidário, mas um pequeno tamborete, erguido a um palmo do chão, para um diálogo profundamente amoroso sobre o que nos preocupa. E são tantas coisas, tantos problemas que parecem insolúveis, que o desânimo pode nos seduzir a uma vida contemplativa, que sendo por fuga, torna-se alienação. Os que vivem de salário ou de aposentadorias baratas; os que lutam pelo almoço para garantir o jantar ou os que ficam com as sobras das alegrias de uns poucos sabem muito bem do que estamos falando. No entanto, é preciso refletir, e essa reflexão nasce quando nos afastamos do epicentro do turbilhão societário e nos dedicamos a enfrentar o mosaico do cotidiano e organizar os nossos pensamentos e convicções, sem radicalidades, pois é preciso, em qualquer análise de situação, estarmos abertos a todos os recortes da realidade e termos a certeza de que, mesmo assim, alguns nos escaparão.

O “Bicho” está pegando! Como aquele monstro bíblico do Apocalipse, que arrancou parte das estrelas do firmamento, o Congresso Nacional, na sua formação heterodoxa e cruel, escolhido pelo voto do povo no “tonteio” dos embates entre partidos políticos oportunistas quer comer o Orçamento da República por meio de emendas impositivas, que travarão qualquer condução política da gestão de um governo que precisa ser para todos. Eles querem o orçamento para si. Não se trata de levar o dinheiro para casa, como acontece nos furtos ou assaltos a bancos, mas levar o orçamento para seus moinhos, seus redutos eleitorais nem sempre claros e transparentes, para investimentos nem sempre necessários e urgentes. Tudo isso, para poder garantir, com mesquinhez, a renovação dos seus mandatos, a alimentação dos lobbies indecentes que defendem interesses personalísticos e rondam os corredores de Brasília; promover a cizânia entre grupos sociais e o poder e garantir, assim, a permanência dos privilégios, que bem conhecemos: desonerações, sonegações, postergações e tantas outras ações que pelo inusitado, pela invencionice e pela desfaçatez já ganharam até um nome eufemístico: “jabutis”, que sobem em árvores frondosas. E o pior, já temos até bancadas defendendo o “direito divino” de certos líderes religiosos, em transações controversas, a não darem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

No fogo cruzado das acusações, descobrimos que não vivemos no melhor ou no pior dos mundos. A onda que sacode a contemporaneidade é bem maior até as provocadas pelos tsunamis pontuais que conhecemos. É geracional, manifesta e insidiosa de um mundo cansado de lutar contra si mesmo, contra a maldade, as desigualdades e as fraquezas de caráter que nos levaram à renúncia da perseguição da ética, da alteridade e da bondade. Despidos ou desanimados dessas vontades, restou-nos a volta aos velhos fantasmas que pensávamos ter destruído: o nazifascismo, a crueldade com os semelhantes, a violência desarrazoada contra tudo e contra todos, o narcisismo e o individualismo, que fazem de nós mesmos vítimas e algozes armados pelos algoritmos nas redes sociais, encurralados nos guetos místicos e ideológicos. O que dizer de tudo isso? “A luta continua”! A vita activa está bem ali, mesmo que os nossos olhos não a vejam e nossas mãos não consigam acessá-la!

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(*) Walmir de Albuquerque Barbosa é jornalista profissional, graduado pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e professor emérito da Ufam.
Leia mais: Crônicas do Cotidiano: A presença do outro, a ação comunicativa e a infocracia
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(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

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