Culinária indígena enfrenta preconceito e falta de representatividade para levar à mesa cultura comunitária

A pedagoga Clarinda Maria Ramos e o antropólogo João Paulo Tukano fundaram, em 2020, o Biatüwi, considerado o primeiro restaurante indígena de Manaus (Divulgação)
Da Revista Cenarium*

MANAUS – Aos 13 anos, um dos passatempos prediletos de Kalymaracaya era ficar na frente da televisão para assistir a programas culinários. Quando o assunto era gastronomia indígena, no entanto, ela se sentia incomodada.

“Os chefs falavam coisas que não faziam sentido e eu me perguntava: ‘Não tem nenhum chef indígena para representar a gente?’”, conta a sul-mato-grossense.

Ela até tentou procurá-los, mas não encontrou ninguém. “Foi aí que tomei a decisão de estudar gastronomia e ser essa representante”, diz.

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Hoje, aos 41, ela é uma das principais referências em culinária tradicional do Brasil e engrossa o movimento de indígenas que usam a gastronomia para valorizar suas raízes.

Kalymaracaya lembra que, durante o curso técnico de cozinha, não havia disciplinas sobre culinária indígena e que recebia olhares de desconfiança dos professores quando tentava inserir o assunto.

“Tentava passar meu conhecimento, mas não queriam. Os professores tinham técnicas que contradiziam meus saberes indígenas”, diz ela, que faz parte do povo Terena.

Os percalços continuaram mesmo depois de ter se firmado no mercado. Ela conta que uma grande cervejaria a convidou, neste ano, para participar de um projeto de valorização de chefs mulheres.

A ideia era que a profissional criasse um prato e o oferecesse a um restaurante, já que ela ainda não tem um espaço próprio por falta de recursos. Em troca, o estabelecimento ganharia divulgação nas redes da empresa. “Fui em dez restaurantes de Campo Grande. Só levei não e porta na cara”.

A chef acredita que as recusas aconteceram porque Mato Grosso do Sul tem uma relação conflituosa com os indígenas. Neste ano, uma liderança Guarani-Kaiowá foi assassinada em meio a disputas por terra.

“Nossos costumes e comidas são ricos, mas estão sendo esquecidos no País”, afirma.

Professor de antropologia da Furg (Universidade Federal do Rio Grande), Martin César Tempass diz que a culinária indígena foi fundamental para os portugueses se estabelecerem no Brasil.

Ele explica que, na colonização, havia uma divisão do trabalho na qual cabia às mulheres cozinhar. Como os navios que aportaram no Brasil traziam, majoritariamente, homens, os portugueses recorreram às indígenas para conseguir as refeições.

“Depois, quando havia mulheres europeias, faltavam ingredientes europeus. Então, os pratos passaram por adaptações com ingredientes indígenas que estão presentes, até hoje, na nossa comida”, afirma ele, que é especialista em simbolismo alimentar indígena.

Alimentos como bolo de fubá, paçoca, tapioca e açaí são legados dos indígenas. Muito popular entre os gaúchos, o chimarrão também é outra herança dos povos originários. Apesar disso, Tempass diz que a contribuição desses grupos foi invisibilizada.

“A gente não come apenas comida. A gente come símbolos. E a comida indígena passou a simbolizar uma identidade que não era desejada pelas elites locais”, afirma.

Especializada em culinária indígena, a chef de cozinha Kalymaracaya diz que valorizar a gastronomia de seu povo é uma forma de lutar contra o preconceito (Cassio Moura/Divulgação)

De acordo com a chef Kalymaracaya, difundir essa culinária é uma forma de romper com esse estigma. Um dos pratos mais tradicionais de seu povo é o hî-hî, um bolinho de mandioca envolto na folha de bananeira.

Ela conta que a receita foi criada durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), quando membros do povo terena participaram do conflito e levavam o hî-hî para alimentar os soldados na fronteira do Brasil.

Como os indígenas desidratavam o bolinho, ele resistia aos longos dias de viagem sem estragar. “A comida é um primeiro passo para que as pessoas possam conhecer melhor a cultura indígena”, diz ela.

Para Clarinda Maria Ramos, 53, a gastronomia também é uma forma de contar a história do povo sateré-mawé, do qual ela faz parte. Em 2020, a pedagoga fundou ao lado do antropólogo João Paulo Tukano o restaurante Biatüwi, o primeiro dedicado à comida tradicional em Manaus.

Clarinda diz que, mais do que restaurante, o espaço é uma casa de comida indígena.

“Num restaurante, você chega e se alimenta sem se preocupar em conhecer a cultura do lugar. Aqui, a gente transmite aos clientes o conhecimento da nossa cultura por meio de cada ingrediente”, diz ela, que participará do Fartura de São Paulo nos espaços Conhecimento e Interativo.

O carro-chefe do estabelecimento é o biatüwi, prato que batiza a casa e cuja tradução revela do que se trata —na língua tukana, a palavra significa peixe com caldo apimentado.

A pimenta é um dos principais temperos do espaço. “Ela não existe apenas para apimentar o prato. Está ali também para proteger, alentar e purificar o seu corpo.”

Outro elemento importante é a formiga saúva, que está presente no peixe puquecado. Nesse preparo, a carne é embrulhada na folha de cacau e assada no moquém, grelha usada para defumar alimentos. Apesar de importante na cultura sateré-mawé, o consumo do inseto já foi alvo de preconceito, conta Ramos.

“A opressão fez com que eu parasse de falar a minha língua e de comer minha comida. A casa de comida busca reconstruir aquilo que deixamos de praticar”, afirma ela.

A 60 km de Manaus, com vista para o rio Cuieiras, um dos afluentes do rio Negro, fica o restaurante Sumimi, que existe há quase 11 anos na comunidade Três Unidos.

Lá, o visitante pode provar o fani, prato típico do povo kambeba feito com mandioca ralada e pirarucu enrolado na folha de bananeira.

A dona, Neurilene Cruz, conhecida como Miskui, diz que servir esse preparo é uma forma de preservar as memórias de seus ancestrais. “Não somos os indígenas de 1500, mas não abandonamos nossos costumes e tradições”, afirma.

(*) Com informações da Folhapress
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