Exploração da Eneva viola direitos de povos da Amazônia

O cacique Jonas Mura mergulha nas águas do Rio Anebá, numa área próxima à exploração de gás e óleo da Eneva, representada ao fundo pelo Complexo do Azulão (Composição de Paulo Dutra/Revista Cenarium. Fotos de Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)
Adrisa De Góes e Márcia Guimarães – Da Revista Cenarium

MANAUS (AM) – “É lamentável a gente não poder ficar em nossa terra sem escolta (policial). É uma vida totalmente diferente não poder ter a liberdade de antes, de pescar, de caçar, de fazer o que se gostava”. Incluído no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PPDDH), o cacique da aldeia Gavião Real I, Jonas Mura, define o que sente ao viver sob ameaças de morte por questionar o processo de exploração de gás e óleo no maior Estado da Amazônia.

A liderança faz parte das quase 200 famílias indígenas e ribeirinhas que moram no entorno do chamado “Complexo do Azulão”, localizado entre as cidades de Itapiranga e Silves, distantes 226 e 181 quilômetros de Manaus, respectivamente, no Estado do Amazonas, que está sob a operação de extração de combustíveis fósseis para geração de energia (termelétricas) da empresa Eneva S.A desde 2021.

Alvo de investigação do Ministério Público Federal (MPF), a empresa Eneva tem denúncias de ameaças de funcionários registradas pelos povos tradicionais, que também afirmam ser ignorados no processo de exploração comercial da região, contrariando a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

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O contexto de ameaças consta em um relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Prelazia de Itacoatiara, que revela denúncias que chegam a citar pessoas ligadas à empresa e apontam os impactos do empreendimento. O documento embasou o pedido de suspensão de licenciamento ambiental do empreendimento, solicitado pelo Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas à Justiça Federal em fevereiro deste ano.

O cacique da aldeia Gavião Real I Jonas Mura, em uma área de exploração da Eneva no município de Silves, no Amazonas (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Eneva é acusada por populações tradicionais e órgãos federais de realizar o processo de licença exploratória sem consulta prévia aos povos originários da localidade, sob alegação de que não existem terras indígenas homologadas ou em estudo na área de influência da extração de gás e óleo. Na contramão, comunidades tradicionais da região lutam para serem reconhecidas. A empresa afirma que mantém diálogo com as populações dos municípios da área de abrangência do Complexo do Azulão.

A série de questionamentos dos indígenas e órgãos públicos sobre a maneira como a instalação da empresa motivou a REVISTA CENARIUM a ir à aldeia Gavião Real I, em Silves, em fevereiro deste ano, para saber quem são os indígenas que se sentem esquecidos pela maior operadora privada de gás natural do país. O local está situado a cerca de 60 quilômetros da cidade, na rodovia AM-363, e mais 20 quilômetros mata adentro.

Pai e filho indígenas em canoa sobre o rio (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Jonas Mura está 27 anos à frente da comunidade habitada por 96 famílias das etnias Mura, Sateré-Mawé e Munduruku. A aldeia onde vive o cacique, Gavião Real I, é uma das sete que integram a região cortada pelo Rio Anebá. Ao todo, cerca de 190 famílias vivem em toda a extensão da localidade adjacente à região explorada pela Eneva.

À reportagem, Jonas ressaltou a preocupação com os limites exploratórios da Eneva no município, sobretudo quanto aos recursos naturais. Para ele, a exploração, que considera desenfreada e sem a devida preservação, pode comprometer o futuro e a manutenção das comunidades, que dependem da caça e da pesca como fonte de alimentação.

“Há muito tempo, a gente vem lutando para não ter os nossos direitos violados pelo homem branco. A luta é para proteger a nossa fauna, a nossa floresta, rios e lagos, para que nossos filhos, netos e bisnetos possam usufruir disso mais tarde. Se a gente não proteger essa terra, ela vai ser destruída pelo homem branco e nossos descendentes não vão poder ver a riqueza que nós temos aqui”.

Jonas Mura é cacique da aldeia Gavião Real I, localizada na Comunidade Livramento, em Silves, no Amazonas.

O cacique destaca, ainda, que as matas e rios são ambientes que contribuem para a sobrevivência das populações das aldeias. Atualmente, a economia nas comunidades gira em torno da produção de farinha de mandioca, extração de tucumã e castanha, além de programas sociais como Bolsa Família e Auxílio Estadual, do Governo do Amazonas.

“As nossas caças que a gente pegava se afugentaram mais longe, os nossos peixes, com esse barulho de queima de gás, com esse barulho de balsas sobre o rio, fugiram daqui. Isso vem nos atingindo dentro da nossa terra indígena. Essa é uma grande preocupação minha com essa situação dessa empresa Eneva, que vem explorando e retirando gás dentro do nosso território”, afirma o cacique da aldeia Gavião Real I.

No município de Itapiranga, o relatório da CPT aponta, ainda, a existência de uma aldeia de indígenas da etnia Baré, além de um grupo de indígenas isolados, ou seja, que não possuem contato significativo com a sociedade em geral. Nesse último caso, a localidade da comunidade tradicional foi preservada pela entidade, mas acredita-se que os indígenas pertençam ao povo Pariquis.

Indígenas em canoa sobre o rio (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

O último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2022 e divulgado em agosto do ano passado, reconhece um total de 1.066 pessoas como integrantes da população indígena das cidades de Silves e 327 em Itapiranga.

Risco de esgotamento

Na aldeia e comunidade Santo Antônio, no Rio Anebá, as incertezas quanto ao futuro das florestas e rios também preocupam famílias indígenas da etnia Mura e mais duas ribeirinhas que vivem na localidade. Atualmente, a produção da farinha de mandioca é a principal fonte de renda dos moradores, que dependem das mudanças da natureza para garantir ou não o sustento do mês.

De acordo com a cacica Ivanilde dos Santos Mura, a pesca já foi uma das grandes fontes de renda da população local, mas atualmente o Rio Anebá deixou de ser rico em peixes. Para ela, a influência sem limites da ação humana contribuiu para a escassez do alimento.

“Aqui, nós dependemos da força da natureza para sobreviver, tanto para trabalhar quanto para se alimentar. Agora, quando o peixe é difícil, a gente recorre ao frango caipira, à caça… A gente não chega a passar fome, mas a vida é complicada, parece que somos invisíveis”, afirma a cacica Mura.

A cacica do povo Mura da Comunidade Santo Antônio, Ivanilde Mura (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

A líder indígena ressaltou, ainda, que o receio do esgotamento de recursos naturais é uma preocupação de outras comunidades na região. Segundo ela, em reuniões e encontros de lideranças tradicionais, o assunto é discutido com frequência e as soluções, na maioria das vezes, são mínimas.

Dinheiro para quem?

“A gente só ouve falar que a Eneva é uma empresa grande, que vai trazer benefícios, melhorias para o povo silvense, mas aqui para nós, que vivemos em meio à mata e ao rio, não chega isso. A nossa grande preocupação é que esses recursos desapareçam cada vez mais (…) A nossa região só é rica para as grandes empresas, mas para nós, que somos daqui, não é”, desabafa a liderança.

Ivanilde Mura destaca, ainda, no relato à reportagem, que durante a permanência da Eneva na região, não houve diálogo entre a empresa e as populações de indígenas locais. Segundo a cacica, as lideranças das comunidades do Anebá atuam com o objetivo de terem suas reivindicações atendidas.

Moradores da Comunidade Santo Antônio, no Rio Anebá (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

O gás do Azulão é transformado em líquido para ser transportado em carretas por 1.100 quilômetros até Boa Vista, em Roraima, onde é regaseificado e utilizado para a geração termelétrica na Usina Jaguatirica I, responsável por cerca de 70% do suprimento elétrico do Sistema Isolado da capital do Estado. Atualmente, a empresa está avaliada no mercado em quase R$ 20 bilhões, de acordo com dados da Bolsa de Valores B3 do dia 19 de fevereiro.

A área de exploração do Campo do Azulão foi descoberta em 1999 e declarada comercial em 2004. A Eneva comprou os blocos de extração de gás da Petrobras em 2017 por US$ 54,5 milhões, mas iniciou as atividades comerciais na região somente em 2021, 22 anos depois da descoberta.

Insegurança alimentar

Por conta dos impactos da exploração de gás e óleo, a segurança alimentar das comunidades já pode estar sendo ameaçada, aponta a CPT. De acordo com o relatório, “apurou-se junto às lideranças que a exploração do gás afeta diretamente muitos dos lagos e rios da região que fazem parte de um Acordo de Pesca”.

Durante o período de seca, esses reservatórios ficam quase totalmente sem água e, com isso, diversas espécies da fauna aquática passam parte do ano represadas em reservatórios naturais, diz o relatório, que aponta que, “caso essas águas sejam contaminadas pelos resíduos da exploração do gás e óleo, colocariam em risco de extinção diversas espécies desse estoque pesqueiro local, o que afetaria a alimentação e a saúde dos habitantes de dezenas de comunidades de Silves e municípios vizinhos”.

A CPT ressalta “a ausência de qualquer estudo que possa demonstrar os efeitos da bioacumulação e da biomagnificação dos contaminantes químicos oriundos da exploração fóssil pela Eneva, que possam comprometer a biota aquática e o ecossistema altamente sensível de toda a região”.

Moradores da região sobre o Rio Anebá (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

A Pastoral da Terra destaca no relatório que o Acordo de Pesca foi criado pela Portaria Ibama Nº 2 de 28/01/2008, publicada no Diário Oficial da União (DOU) – Seção 1, Nº 20, no dia 29 de janeiro de 2008, e abrange o Rio Urubu e todo o complexo lacustre do Canaçari, nos municípios de Itacoatiara, Itapiranga e Silves.

Na região do Igarapé Açu Grande e Igarapé Açuzinho, comunidade Santana, Curuá e Conceição, os indígenas informaram à CPT, segundo o relatório, que não querem mais tomar água dos lagos e igarapés, pois ouviram dizer que numa outra região próxima a outro poço de gás as pessoas estão tendo problema com diarreias e problemas na pele. “Um senhor chegou a ficar muito emotivo e falou: ‘[…] Digam à justiça e ao MPF que os políticos e a Eneva querem acabar com a gente. O que adianta ter Leis se não estão sendo respeitadas? Cadê os fiscais do Estado? Por favor, nos ajudem, digam a eles que nós existimos”.

Sobreposição à terra

O relatório da CPT aponta, ainda, que quando os blocos de gás se sobrepõem às áreas das comunidades indígenas de Silves e Itapiranga, é possível verificar que todas essas áreas são invadidas e impactadas diretamente, e fica evidente a dimensão do problema que a exploração pode causar aos povos e ao meio ambiente da região.

A Pastoral da Terra informou que, a pedido das lideranças, sua equipe que visitou as comunidades foi verificar dois poços que estão dentro dos territórios e, que foram perfurados para estudo de outra espécies minerais, um poço é da GeoSol (Latitude: 2°58’10.06″S, Longitude: 58°30’2.06″O) e o outro da Potássio Brasil (Latitude: 2°38’43.14″S, Longitude: 58° 2’12.17″O).

De acordo com o relatório, a equipe também foi ao poço de gás e/ou óleo da Eneva, que não se sabe ao certo o produto que está operando (localizado com as coordenadas: Latitude: 2°49’23.76″S e Longitude: 58°31’36.97″O”, no município de Silves, “que fica a menos de oito quilômetros de distância da área habitada pelos indígenas, totalmente dentro do perímetro de onde esses povos tiram produtos para sua subsistência”.

A equipe da CPT informou que também visitou poços localizados a menos de sete quilômetros da área de uso dos indígenas de Itapiranga e a menos de 1 quilômetro de moradias que ficam à margem da rodovia AM-363, situados nas coordenadas Latitude: 2°43’5.33″S e Longitude: 58° 9’7.04″O (poço de gás, não operando) e coordenadas Latitude: 2°43’6.30″S e Longitude: 58°10’0.19″O.

Vista aérea de uma das áreas de exploração da Eneva no Anebá, no Amazonas (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

O cacique Jonas Mura acompanhou a reportagem até um dos poços em exploração pela Eneva na região do Anebá, em Silves. O acesso se deu pela rodovia estadual (AM-363), conhecida como Estrada da Várzea, e seguiu por cerca de 20 quilômetros em um ramal de barro, que é de uso da madeireira Mil Madeiras Preciosas. No dia em que a equipe esteve no local, não havia movimentação de funcionários da Eneva.

A exploração do Anebá foi anunciada no início de 2022. À época, a Eneva informou a intenção de integrar a região ao Azulão, bem como construir um gasoduto para interligar os dois ativos. Em fevereiro deste ano, a empresa informou que vai declarar a comercialidade da área recém-explorada à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). A localidade deve ser chamada de Campo de Tambaqui.

“A empresa nunca veio até nós para ter um diálogo, uma consulta aos povos tradicionais, às pessoas que moram próximo a essa grande construção. Nós não tivemos o respeito, sequer, de ser ouvido, tanto pela parte da gestão municipal de Silves quanto pelo Estado (…) Minha preocupação é que, daqui a 20 anos, isso venha desaparecer”.

Cacique Jonas Mura é responsável pela aldeia Gavião Real I, em Silves.

Os indígenas reclamam que não foram consultados sobre o projeto, o que contraria a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O artigo 6º da norma, integrado à legislação brasileira, determina aos governos a consulta prévia às populações tradicionais, de forma que seja respeitada a cultura de cada povo quando houver qualquer medida administrativa ou legislativa que, potencialmente, afete os interesses e modo de vida indígena.

“Aqui, na região do Anebá, assim como em Itapiranga, existem povos indígenas, povos tradicionais, assim como os ribeirinhos. Nós não vamos desistir da nossa luta, pois moramos aqui há décadas. O que nós queremos é ter nossos direitos respeitados e buscamos o reconhecimento. Estão passando por cima da gente. Não vamos sair daqui”, afirma o cacique.

Em 2019, a ANP aprovou o plano de desenvolvimento da reserva de gás da Eneva com um total de 57,70 km². O total da área corresponde a aproximadamente 8 mil campos de futebol. Recentemente, a empresa anunciou que pretende apresentar ao órgão de controle uma nova proposta de expansão exploratória.

Parte da área de exploração de gás e óleo da Eneva (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

O relatório da CPT aponta, ainda, que apesar dos impactos ao meio ambiente e às comunidades locais, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) concedeu “licença para a instalação e operação do projeto da Eneva, sem a apresentação e discussão social do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) específico para a exploração do gás, para os diversos poços já em exploração, desde 2021″, e ainda apresentam novos projetos para ampliar o empreendimento do Complexo do Azulão.

À espera do progresso

Com pouco mais de 11 mil habitantes, a população do município de Silves aguarda o progresso prometido com a chegada da Eneva na região. Na cidade, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) local é 0,632, em uma escala que varia entre 0 a 1. O valor é considerado médio no Estado. A única cidade com IDH avaliado como alto é a capital do Amazonas, Manaus, com 0,737.

A CENARIUM esteve na cidade para entender, junto aos moradores, como o empreendimento de exploração de gás tem influenciado economicamente no município. Mesmo após quatro anos do início da operação comercial da empresa em Silves, os relatos sobre a falta de emprego ainda são constantes.

Trabalhando como operadora de caixa em um pequeno comércio, Keite Viana afirma que não há diversidade de oportunidades de trabalho na cidade. Segundo ela, as vagas disponíveis, na maioria das vezes, são para comércios como mercadinhos e lojas de roupas, além do empreendedorismo e cargos comissionados na Prefeitura de Silves.

Moradora de Silves caminha por rua sem asfaltamento na cidade (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

“É difícil encontrar emprego aqui. O trabalho é mais no comércio. Na prefeitura, é só quem eles querem. A Eneva tem quatro anos aqui e Silves continua a mesma coisa. Quando se anda pelas ruas, é possível ver a situação delas”, relata a jovem.

Na chegada à cidade, a reportagem teve dificuldades para encontrar hotéis ou pousadas disponíveis, mesmo em um período de baixa temporada turística no município. Isso porque a maioria dos estabelecimentos é ocupada por pessoas de outros Estados que vão a Silves trabalhar na Eneva, apurou a reportagem nos hotéis consultados.

O agricultor Gilcélio da Silva, morador da comunidade São João, que fica em frente à cidade, contou à reportagem que quando precisa de atendimento médico recorre à unidade hospitalar do município, mas nem sempre consegue solução para o problema de saúde.

“A vida do silvense é feita de dificuldades e uma das maiores é quando a gente vem pra cidade em busca de atendimento médico e não consegue ser atendido. A gente vem das comunidades sem certeza se vai ou não conseguir medicamento e consulta médica”.

Gilcélio da Silva, morador de Silves.

Na cidade, a reportagem também encontrou um grupo de coletores de resíduos em um lixão a céu aberto. Um dos trabalhadores, que preferiu não ser identificado, afirmou que coleta alumínio e cobre no local, a fim de garantir o próprio sustento e da família.

“A gente queria sair desse lixo. Às vezes, dá pena de ver as pessoas aqui, é triste, chega dá vontade de chorar. Não era para nós vivermos uma situação dessas, já que a cidade é rica em gás, mas Silves está ficando para trás”, desabafa o trabalhador.

Grupo de pessoas coleta resíduos em lixão a céu aberto no município de Silves (Luiz André/Revista Cenarium)

Segundo dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o município de Silves recebeu, em 2023, pouco mais de 2 milhões de royalties pela extração do combustível. A previsão anual é de R$ 73 milhões ao ano em um período de pico das obras de expansão da exploração.

Ameaças ao modo de vida

“Estão acabando com nosso chão, nosso ar, nossa floresta e contaminando nossas águas. Sem peixe, sem caça, sem ar limpo, como podemos viver? Não queremos dinheiro sujo, que vai custar a vida dos nossos parentes. Não queremos!”. A declaração em tom de desabafo consta no relatório da CPT e é atribuída a um ancião indígena ouvido pela equipe que visitou as comunidades em Silves e Itapiranga. A fala emocionada traduz o sentimento sobre os impactos da exploração de gás e óleo na região.

O relatório destaca que as características da região de Silves e Itapiranga são “muito sensíveis, principalmente para exploração mineral, que tem efeito direto ao meio ambiente e a quem o habita e dele subsiste”. Ainda segundo a CPT, não foram realizados estudos suficientes que assegurem que a exploração de gás e óleo não trará danos irreparáveis ao ecossistema.

Para o produtor rural Rotenes de Castro Mura, morador da aldeia Gavião Real I, no território silvense, a colheita de tucumã contribui, mensalmente, na renda familiar. Entretanto, ele ainda precisa se deslocar para caçar e pescar em áreas afastadas da comunidade indígena. Devido a essa necessidade, a incerteza do futuro na região se tornou uma preocupação.

O produtor rural Rotenes Mura segura um cesto de tucumã (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

“O peixe, a caça, a nossa produção é muito importante para a nossa sobrevivência, porque não temos outra fonte, não tem de onde tirar. Tudo o que a gente tira daqui serve para a nossa família. De uns tempos para cá, tudo ficou mais difícil. Depois que a Eneva chegou aqui, somos até proibidos de entrar na mata para buscar o sustento”, relata Rotenes Mura.

O relatório da CPT aponta que a exploração do gás e do óleo do Campo Azulão atinge “dois dos maiores reservatórios de água doce do planeta, o Rio Amazonas e o Aquífero Alter do Chão, a floresta amazônica e toda a sua diversidade de vida e riqueza, o que pode desencadear efeitos catastróficos não somente para Silves e Itapiranga, mas também para a população de outros Estados”.

Ainda de acordo com a Pastoral da Terra, somente na área do território Gavião Real há oito áreas de terra preta, onde numa dessas áreas está localizado um antigo cemitério indígena e também é um dos Sítios Arqueológicos da região. A reportagem da CENARIUM visitou o local e encontrou fragmentos de peças produzidas em cerâmica, com formatos que se assemelham a potes utilizados por indígenas do passado.

Fragmentos históricos de utensílios feitos em cerâmica indígena encontrados próximos à antiga casa do cacique Jonas Mura (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Também existem, segundo a CPT, quatro lagos considerados estratégicos para a preservação do pirarucu e de outras espécies, além de um cemitério indígena que está em uso. Foram também identificados pela CPT quatro andirobais nativos, quatro copaibais nativos e três castanhais nativos, sendo um grande e dois pequenos.

Ameaças à vida

A luta assumida pelo cacique Jonas Mura se tornou alvo de perseguição, insegurança e ameaças, segundo relatou a liderança indígena à CENARIUM. No ano passado, ele foi inserido no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (PPDDH). Em uma das situações, teve que fugir de madrugada porque foi avisado de que um grupo invadiria a casa onde estava.

“Tive que sair às 2 horas da madrugada, com escolta, com um sargento, mais o pessoal da Polícia Civil. São diversas situações”, disse o líder da aldeia Gavião Real I, que juntamente com outros líderes comunitários, têm questionado junto a órgãos federais, a concessão de licenças para exploração do gás, sem o reconhecimento das populações tradicionais que habitam a região.

De acordo com Jonas Mura, as ameaças de morte começaram em 2016, quando os indígenas iniciaram a busca por sua identificação étnica e quando o empreendimento para a exploração do gás ainda estava em fase de estudos e testes. Em dezembro daquele ano, a liderança teve sua casa incendiada e perdeu todos os seus pertences.

O cacique Jonas Mura (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

“Um dia, quando a gente saiu para pescar, as minhas coisas todas dentro da casa e eles [os autores] puseram fogo. Até hoje, a polícia nunca chamou para fazer uma investigação séria sobre essa questão, foi o que me chamou mais atenção. Queimou tudo, nós ficamos sem nada, apenas com a roupa do corpo, eu, minha esposa e filhos. Nós tivemos que sair daqui para viver em meio a mais pessoas”, relata o cacique.

A reportagem teve acesso ao Boletim de Ocorrência (BO 6680/2016), registrado na Delegacia de Itacoatiara e o caso também foi reportado à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Em uma das páginas do registro está anexada a foto com a seguinte frase, deixada pelos autores do crime: “O próximo é o Jonas”.

Incêndio à residência do cacique Jonas Mura foi registrado em Boletim de Ocorrência (Arquivo Pessoal)

No BO, a liderança indígena cita famílias da região como pessoas que faziam ameaças. Na ata de reunião da Funai, consta o relato de que o caso não seria atendido na Delegacia de Itacoatiara, por ser de jurisdição de Silves e que a Delegacia de Silves não tinha “condições logísticas de atendimento”. Jonas Mura afirma que nunca chegou a ser comunicado sobre as investigações do caso.

Denúncias documentadas

As denúncias feitas por Jonas Mura foram documentadas no relatório da CPT, que também contém denúncias de ameaças mais recentes, ocorridas em 2023. No último dia 16 de agosto, dia da chegada da CPT à aldeia Gavião Real I, “lideranças informaram que uma caminhonete branca, modelo Amarok, com funcionários da Eneva, havia acabado de sair da localidade” e que estavam à procura da liderança indígena que está sob proteção do PPDDH.

Ainda de acordo com os relatos, “inclusive teriam tirado foto da casa do cacique, do barracão da aldeia e de outros lugares”. A CPT foi informada que “as lideranças relataram ainda que não era a primeira vez que pessoas supostamente ligadas a Eneva estariam rondando a aldeia”.

No mesmo ano, em junho, outro relato de ameaça contado por moradores da comunidade foi incluído nos registros da CPT. Dessa vez, um jovem da localidade contou que, “no mês de junho deste ano [2023], teria visto uma picape branca e um carro cinza cheio de homens armados próximo ao ramal de acesso à aldeia”.

“Eu estava caçando quando ouvi o barulho dos carros e fui olhar mais de perto para ver quem era, foi quando vi dois carros parados a uns 100 metros do ramal, sentido pra quem sai da aldeia, e três homens saindo dos carros engatilhando dois revólveres e uma arma grande, com lupa, que parecia ser uma espingarda. Um deles falou para outro: o nome do cacique é Jonas Mura. É ele e mais aquela mulher e o marido, da outra comunidade. Vamos acabar com esse problema. Quero ver quem vai ter coragem pra falar alguma coisa”, disse o jovem, conforme trecho do relatório da CPT.

Relato de ameaça registrado em relatório do CPT (Reprodução)

Em outra ocasião, em fevereiro de 2023, “quatro homens fortemente armados abordaram um carro oficial do Dsei Manaus [Distrito Sanitário Especial Indígena], dentro do ramal da comunidade”, perguntando pela liderança indígena. A Jonas Mura teve conhecimento sobre esse fato porque foi informado pelas pessoas que estavam no carro do Dsei. Os homens estavam em uma picape, cuja placa não foi identificada, de acordo com a denúncia, que foi encaminhada ao Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas, sendo registrada na Manifestação 20230040827. A liderança indígena concedeu à reportagem acesso às cópias de partes do documento do MPF onde estão registradas as denúncias de ameaça, incluindo o episódio da abordagem ao carro do Dsei.

Relato de ameaça registrado em denuncia ao MPF (Reprodução)

O cacique Jonas Mura destacou, ainda, em entrevista à CENARIUM, que vem sendo acusado de tentar impedir o desenvolvimento econômico e social da região, ao fazer questionamentos à exploração do gás, e ressaltou que seu objetivo e de outras lideranças é assegurar o reconhecimento dos indígenas.

“A única coisa que eu quero mesmo é que eles ouçam a nossa voz, que eles nos reconheçam, que estamos ali há muito tempo. Ali é nosso território. Ali é a nossa casa. Ali a gente tem lugar sagrado, tem lagos que a gente pesca. Que haja o empreendimento de uma forma respeitosa com a gente”, afirmou, acrescentando que é necessária também uma compensação pelos impactos ao meio ambiente.

Apuração das ameaças

Em setembro de 2023, a CENARIUM já havia noticiado o contexto de ameaças. Na ocasião, ao ser questionado sobre o recebimento de denúncias de ameaças citando pessoas ligadas à empresa Eneva, o MPF no Amazonas, por meio de sua assessoria de comunicação, já havia confirmado “o recebimento das denúncias mencionadas”. Naquele mês, o MPF informou ainda que, “o órgão ministerial já acionou o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do Amazonas e comunicou órgãos públicos sobre a situação”.

Também questionada se confirmava o recebimento da denúncia de ameaças de morte e quais medidas de proteção foram tomadas, a Funai informou, por meio da assessoria de comunicação, à época, que “recomendou ao órgão ambiental do Amazonas (Ipaam), a suspensão do curso do processo de licenciamento ambiental do empreendimento, até que seja devidamente regularizado o Componente Indígena, vez que as licenças foram emitidas sem a devida consulta ao órgão indigenista”.

Registros federais

O contexto de ameaças está registrado, além do relatório da CPT, em documentos do MPF, como a Recomendação Legal Nº 03/2023 5º OFÍCIO/PR/AM, que cita em um dos seus trechos: “CONSIDERANDO informações recebidas de lideranças indígenas e tradicionais, do Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos do Amazonas (PPDDH/AM), bem como de outras fontes sobre ameaças contra a vida de lideranças na região de Silves/AM a partir das pressões originadas no contexto do empreendimento da empresa Eneva/SA na região e das discussões referentes ao mesmo;”.

Na recomendação, o MPF pediu o cancelamento de audiências públicas sobre projeto de ampliação do empreendimento até que fosse elaborado o Estudo de Componente Indígena (ECI). As audiências foram realizadas.

Em outro documento, desta vez do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas (Ofício SEI nº 2202/2023/MPI), com data de 21 de agosto de 2023, são citadas diversas situações de conflito com indígenas no Amazonas, como a exploração de potássio no município de Autazes, incluindo as que envolvem a extração de gás em Silves.

Vista aérea do Complexo de Azulão (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Ao identificar o assunto do ofício, o documento afirma: “Denúncia e solicitação de apoio. Contexto de ameaça e de perseguição de lideranças indígenas defensoras e defensores de direitos humanos no Estado do Amazonas. Risco iminente de morte. Exploração mineral e garimpo em TI”.

O documento foi enviado à Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), com cópias para Defensoria Nacional de Direitos Humanos (DNDH/DPU), MPF no Amazonas, Procuradoria da República no Estado do Amazonas (PR/AM), Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) e Comissão Pastoral da Terra no Amazonas (CPT/AM).

Apuração em andamento

A síntese do relatório, intitulada “Situação dos povos indígenas dos municípios de Itapiranga e Silves, 11 a 19 de agosto de 2023”, segundo a CPT, traz informações registradas “in loco, a partir de relatos dos povos indígenas e tradicionais que habitam na região de Silves e Itapiranga, dos dados registrados no App UTM, Geo Map (aplicativos de mapeamento por satélite), de pesquisas em plataformas do Estado que disponibilizam acesso público aos seus conteúdos e fotografias tiradas do celular da Equipe CPT”.

De acordo com a Pastoral da Terra, a íntegra do relatório não foi divulgada ainda por conter informações sensíveis, para preservar a segurança de pessoas envolvidas e para não prejudicar o andamento de apurações.

Ainda de acordo com a CPT, uma equipe da Prelazia de Itacoatiara, acompanhada de lideranças comunitárias de cada município, esteve na região para realizar levantamento cartográfico, étnico e cultural dos povos indígenas e tradicionais que habitam nas áreas rurais dos municípios citados.

Crianças indígenas da aldeia Gavião Real I, em Silves (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

“A missão teve como objetivo atender a um pedido urgente das lideranças indígenas, para ouvi-las sobre a crescente escalada de ameaças, violações de direitos e insegurança que estão sofrendo decorrente da exploração do gás pela empresa Eneva, e para ajudá-las a identificar o local onde vivem, nos autos da Ação Civil Pública / processo 1021269- 13.2023.4.01.3200, que tramita na 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da SJAM [Sessão Judiciária do Amazonas]. Por razão das notícias de ameaças, seguiu-se um protocolo rigoroso de segurança”, diz trecho do relatório.

A Ação Civil Pública é movida pela Associação de Silves pela Preservação Ambiental e Cultural (Aspac) e por representante da Associação do povo Mura, no intuito de garantir a consulta aos povos indígenas e tradicionais da região dos municípios de Silves e Itapiranga, além de assegurar a legalidade na execução do processo de licenciamento ambiental do empreendimento, com a elaboração também do Estudo de Componente Indígena (ECI).

A CPT Prelazia de Itacoatiara informou que enviou o relatório ao Ministério Público Federal do Amazonas (MPF), à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI), para conhecimento e apuração das denúncias.

Síntese do relatório da CPT:

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Retrato indígena

Os indígenas identificados no relatório da CPT que pertencem aos povos Mura, Baré, Sateré-Mawé, Munduruku e vivem em Silves e Itapiranga estão distribuídos em diversas aldeias.

“As comunidades indígenas até o momento identificadas pela CPT: São sete aldeias em Silves (Curuá, 12 famílias; Gavião Real II (Conceição), 14 famílias; Livramento, 100 famílias; Mura Carará, 19 famílias, Santo Antônio, 14 famílias; São Francisco, 27 famílias; Vila Barbosa, 49 famílias) e duas em Itapiranga (Vila Izabel, 14 famílias”, diz o relatório.

O relatório da CPT informa ainda que as aldeias de Silves são atendidas pela Secretaria de Saúde Indígena – Distrito Sanitário Especial Indígena (Sesai/Dsei/Manaus), já os indígenas de Itapiranga, apesar de alguns deles terem o Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (Rani), não contam com essas políticas públicas.

Indígenas em área de exploração da Eneva (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

“É importante frisar que há famílias e/ou comunidades de indígenas nos dois municípios que ainda não foram mapeadas, apenas têm-se informações sobre a existência deles”, ressalta o relatório.

De acordo com a CPT, as informações sobre os indígenas isolados, do povo Pariquis, serão encaminhadas aos órgãos específicos da esfera federal para as devidas e legais providências.

Terra reivindicada

De acordo com o relatório da Comissão Pastoral da Terra, “atualmente, o povo Mura da Aldeia Gavião Real se encontra em processo de qualificação, sendo que a reivindicação deste território se deu há mais de oito anos. Não se teve informação do andamento do RCID [Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação]”.

No relatório, a equipe da CPT informa que teve acesso a dois documentos sobre o processo de qualificação do Território Gavião Real e que “estes comprovam pelo menos duas falhas do Estado – os documentos mostram a data da visita de reconhecimento dos povos indígenas, 06/08/2015, conforme declaração expedida pela Fundação Nacional do Índio Funai Coordenação Regional Manaus, e a data que o relatório da visita foi assinado, dia 05/07/2023”.

Ainda de acordo com o relatório, “os documentos também não deixam dúvidas que o Estado sabia da existência dos indígenas na região de Silves e que o licenciamento não cumpriu as exigências e orientações legais, pois não houve sequer um diálogo, quanto mais a Consulta Prévia, Livre e Informada da Convenção OIT [Organização Internacional do Trabalho] 169”.

Pressões e favorecimento

À equipe da CPT, conforme o relatório, foram “relatadas inúmeras ocorrências de ameaças e de tratamentos discriminatórios cometidos por vereadores e funcionários da Prefeitura [de Silves] e da Eneva que os indígenas sofrem nas repartições públicas local, nas ruas e dentro das aldeias”.

O relatório cita ainda que em duas audiências públicas sobre o empreendimento da Eneva em que a CPT participou acompanhando as lideranças uma servidora do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) enfatizou “que não existe Terra indígena em Silves e que não há comunidades indígenas impactadas pela exploração do gás”. Para os indígenas, aponta o relatório, o comportamento da servidora pública é um indicativo de que o Ipaam possa estar atuando de forma parcial e em benefício dos interesses da empresa. “Até no documento da Eneva os dados sobre a população indígena são falsos”, destacou uma liderança, de acordo com o relatório da CPT.

Ainda de acordo com o relatório, “em todas as aldeias visitadas ouviu-se relatos que os indígenas e camponeses tradicionais já estão tendo problemas emocionais e que um dos fatores causadores poderia ser a pressão psicológica que eles estão sofrendo”.

Indígena em canoa (Ricardo Oliveira)

Em seu relatório, a CPT ressalta que mantém contato diário com as lideranças indígenas e tradicionais das regiões impactadas pela exploração do gás nos municípios de Itacoatiara, Itapiranga e Silves. De acordo com as informações colhidas nas comunidades, conforme descrito no relatório, “há um possível favorecimento e apoio do Poder Público (IPAAM, Comissão de Geodiversidade, Recursos Hídricos, Minas, Gás, Energia e Saneamento da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, na pessoa do Dep. Sinésio Campos, de vereadores e da prefeitura do município de Silves) ao projeto da empresa Eneva para explorar gás e óleo no Amazonas.”

Recomendação da Funai

A CPT ressalta que a Funai recomendou a suspensão do curso do processo de licenciamento ambiental das atividades de exploração de gás do Campo da Azulão (Ofício 1705/2023/DPDS/Funai), devido aos relatos de possíveis impactos às comunidades indígenas da região.

A CPT também salienta que não se identificou no Relatório de Impacto Ambiental (Rima) da implantação do projeto o número da população indígena e que no Estudo de Impacto Ambiental do Projeto de Produção e Escoamento de Hidrocarbonetos do Complexo de Azulão e adjacências, Bacia do Amazonas, datado em março de 2023, a Eneva utilizou dados desatualizados sobre a população atual dos indígenas dos municípios de Silves e Itapiranga.

MPF quer suspensão

Procurado pela REVISTA CENARIUM para esta reportagem novamente em dezembro de 2023, o Ministério Público Federal (MPF) do Amazonas não se pronunciou sobre as ameaças de morte contra indígenas na região. À época, o órgão informou que tentava, na Justiça, a suspensão das licenças ambientais emitidas pelo Governo do Estado.

Em fevereiro deste ano, o órgão pediu ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região que os futuros licenciamentos ambientais relacionados à exploração de petróleo e gás sejam realizados somente pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), na região do Complexo do Azulão.

O MPF solicitou também a suspensão imediata de todos os processos do licenciamento ambiental do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) que envolve a Eneva. A petição ainda pede a revogação da exploração dos poços de gás e petróleo em áreas que estejam localizadas nos territórios indígenas, extrativistas e de povos isolados impactados pelo empreendimento, apontadas no relatório da CPT.

“Fica claro que o empreendimento afeta comunidades em terras indígenas, mesmo ainda não homologadas, e territórios tradicionais, o que faz com que o Ibama seja o órgão competente para a realização do licenciamento”.

Trecho da manifestação do Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas.

As solicitações foram realizadas após inquérito que foi conduzido pelo MPF sobre os possíveis impactos a povos indígenas e comunidades tradicionais resultantes da exploração de petróleo e gás na Bacia do Amazonas e também sobre a criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Saracá-Piranga, que fica localizada na mesma área onde a termelétrica pretende ser instaladas juntamente com o complexo do Azulão.

Caso os pedidos de urgência não sejam atendidos pela Justiça, o MPF pede que o Ipaam fique impedido de expedir qualquer licença ambiental no complexo do Azulão e que os órgãos fiscalizadores (Ipaam e Ibama) não emitam qualquer licença de atividade local sem a consulta prévia aos povos indígenas e extrativistas da região previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), além da realização do Estudo de Componente Indígena (EIC) pela Funai e os estudos dos povos isolados da região.

O MPF ressalta, ainda, que a empresa Eneva e o Ipaam ignoraram a presença de terras indígenas em processo de demarcação no licenciamento ambiental para a Usina Termelétrica Azulão na Bacia do Amazonas. A instituição destaca ainda que a região é coberta por Acordo de Pesca com o Ibama, estratégia que restringe a atividade na região. Considerando isso, a atividade de exploração de gás, segundo o MPF, compromete ainda a segurança alimentar das comunidades.

Cacique Jonas Mura junto a poço de exploração da Eneva (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Em nota sobre o pedido do MPF, a Eneva utilizou informações do Incra e da Funai para rebater a tese acatada pela Justiça Federal, que tem como base o relatório da Comissão Pastoral da Terra.

“É importante destacar que, de acordo com as bases oficiais da Funai e Incra, que regulamentam a definição no Brasil, não foram identificadas comunidades tradicionais indígenas e/ou quilombolas na área do Campo de Azulão. Dessa forma, não há o que se falar de ausência de estudos indígenas ou quilombolas, pois não há previsão legal para tal”, ressaltou a empresa.

Ipaam nega irregularidades

Procurado pela reportagem, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) enviou nota e refutou qualquer favorecimento à Eneva e afirmou que o licenciamento ambiental da empresa em Silves e Itapiranga segue as diretrizes da legislação ambiental vigente.

“Não procede qualquer alegação de parcialidade quanto ao trabalho do órgão ambiental, tendo em vista que o Ipaam segue o que tem determinado e legislação atual”, afirma a nota.

Agente de fiscalização do Ipaam (Divulgação/Ipaam)

O órgão destacou que não há terras indígenas demarcadas na região do empreendimento, tornando desnecessária, até o momento, a revisão das licenças concedidas. O instituto ainda reforça que a empresa Eneva atende aos requisitos ambientais estabelecidos, respeitando as normativas em vigor.

A reportagem também tentou contato com o deputado estadual Sinésio Campos e o prefeito de Silves, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.

Proteção policial

Com relação à segurança e direitos dos povos indígenas na região, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) confirmou ter recebido denúncias, incluindo ameaças de morte, e informou ter aberto um processo para acompanhar as investigações. Em nota enviada à CENARIUM, o órgão federal afirma que houve uma reunião inicial com a Articulação dos Povos Indígenas da Amazônia (Apiam), em resposta a uma carta escrita pela associação.

Em relação ao relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que recomendou ação urgente sobre povos isolados, o MPI afirmou que contatou a Funai para alinhamento com o Departamento de Proteção Territorial e de Povos Isolados e de Recente Contato.

No que diz respeito ao processo de licenciamento ambiental e consulta aos povos indígenas, o MPI disse que participa do processo e disse ter solicitado ao Ipaam o cancelamento de audiências públicas da Eneva até a visibilização adequada dos indígenas no procedimento. A Fundação recomendou a suspensão do processo de licenciamento ambiental devido à ausência de consulta adequada aos órgãos indigenistas, o que, no entanto, não ocorreu.

Criança indígena e papagaio na aldeia Gavião Real I (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Quanto à qualificação para o reconhecimento de território indígena em Silves, o MPI informou estar ciente do processo, mas indicou que os detalhes atuais sejam fornecidos pela Funai. Procurada, a Fundação não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre o assunto, até o fechamento desta reportagem.

Desconhece denúncias

A Eneva informou, em nota, que não tem conhecimento de denúncias envolvendo seus colaboradores no Complexo Azulão e disse que tem atuação “transparente” e “em conformidade com a legislação ambiental”. A empresa disse que repudia práticas violentas e, contrariando relatório da CPT e depoimentos de lideranças locais, afirma que mantém diálogo pacífico com as comunidades, e que tem compromisso com o desenvolvimento econômico e a preservação ambiental.

Quanto ao licenciamento, a Eneva disse que o processo atende aos requisitos previstos em lei e afirma que o modelo atual não requer consulta prévia a comunidades indígenas ou quilombolas na área de influência direta do empreendimento. A companhia afirma ainda que seus estudos prévios não constataram impactos a comunidades indígenas, o que o MPF discorda.

Posicionamento na íntegra:

A Eneva desconhece a existência de denúncia a respeito de seus colaboradores, contratados e subcontratados e esclarece que atua com total transparência em todas as fases de implantação do Complexo Azulão e com irrestrito respeito à legislação ambiental vigente. A empresa repudia toda e qualquer prática violenta, seja de funcionários diretos, indiretos e/ou fornecedores. Valorizamos as regiões em que estamos presentes e mantemos um diálogo transparente e pacífico com as comunidades locais. Temos um processo periódico de comunicação com os representantes locais, marcado pela abordagem totalmente pacífica e sem nunca ter identificado incidente de qualquer natureza.

A Eneva ainda destaca que todos os processos de licenciamentos de seus empreendimentos na Amazônia cumprem rigorosamente as leis e os regulamentos. Eles permitem contribuir com o desenvolvimento, com a inegociável preservação da vida e do meio ambiente, com a geração de empregos e oportunidades e com o alinhamento às novas matrizes econômicas para a região. Vale ressaltar que a empresa comprou o Campo de Azulão da Petrobras em 2017, tendo iniciado as contratações de funcionários a partir de 2018.

Cumpridos, portanto, todos os requisitos legais no referido Campo de Azulão, é importante informar que o gás produzido na unidade de Silves abastece hoje mais de 50% de toda a energia consumida no vizinho estado de Roraima. Todas as etapas do processo de licenciamento ambiental, reiteramos, estão ocorrendo conforme estabelecido na legislação. A Eneva apresentou o EIA/RIMA dentro do prazo exigido. O documento está disponível para consulta no site do IPAAM (http://www.ipaam.am.gov.br/eneva-rima-silves-e-itapiranga/).

Para esse licenciamento não é exigida realização de consulta prévia a comunidades tradicionais indígenas ou quilombolas, bem como não há identificação de indígenas e quilombolas na área de influência direta do empreendimento, num raio de 30 quilômetros. Os estudos técnicos realizados não identificaram impactos ambientais sobre as terras indígenas demarcadas ou em fase de demarcação e nem sobre as unidades de conservação. Também não há impactos ambientais interestaduais.

Maior operadora privada de gás natural onshore do Brasil e empresa integrada de energia, a Eneva segue as melhores práticas de governança, está listada no Novo Mercado da B3 desde 2007 e integra a carteira do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE B3), sendo listada entre as companhias com o melhor desempenho em práticas de sustentabilidade em suas operações. A companhia é signatária do Pacto Global das Nações Unidas (ONU).

Assista à reportagem:
Editado por Márcia Guimarães
Revisado por Gustavo Gilona
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