Fome: políticas públicas são chave para reverter quadro alarmante no Brasil, apontam especialistas

O Brasil voltou a enfrentar o problema em 2015, tendo um agravo em 2020 (Ricardo Oliveira/CENARIUM)
Ívina Garcia – Da Revista Cenarium

MANAUS – A fome e a pobreza estão entre os desafios mais urgentes do Brasil. O País chegou ao fim de 2022 com um cenário de números alarmantes, com 62,5 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados no início de dezembro, e mais de 33 milhões de pessoas sem terem o que comer diariamente, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). De acordo com especialistas, os investimentos do governo federal, em políticas públicas, devem ser a chave para a próxima gestão tentar reverter o quadro preocupante.

REVISTA CENARIUM fez um retrospecto dos desafios enfrentados pelo Brasil nessa questão social e buscou apontar o que precisa começar a ser feito para a melhoria dos índices que se traduzem na dura realidade da maioria da população brasileira. Entre os pontos citados por economistas e cientistas sociais, há que se envidar esforços, especialmente, em programas sociais de habitação e geração de emprego, agregados aos já existentes programas de distribuição de renda que, sozinhos, não conseguem sanar os problemas sociais enraizados na sociedade brasileira.

Em 2014, o País havia saído do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU), por conta de estratégias econômicas e sociais vindas desde os governos dos presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. O Brasil voltou a enfrentar o problema em 2015, tendo um agravo em 2020, ao longo da pandemia da Covid-19, apesar do auxílio emergencial de R$ 600 para famílias mais vulneráveis, sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), derrotado nas urnas pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

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Mais da metade da população brasileira vive em graus leve, moderado e grave de insegurança alimentar (Ricardo Oliveira/CENARIUM)

O presidente eleito, em seu primeiro discurso à Nação, no dia 30 de outubro, após a apuração das urnas, reafirmou o pacto de diminuir a pobreza e acabar com a fome. “Nosso compromisso mais urgente é acabar com a fome outra vez. Não podemos aceitar que milhões de pessoas, nesse País, não tenham o que comer. Este será, novamente, o compromisso número um do meu governo”, afirmou Lula.

Conforme o sociólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Luiz Antônio Nascimento, o enfrentamento da pobreza não é só sobre dinheiro. “Ela [a pobreza] se materializa mais contundentemente pela fome. Daí a necessidade de se combater a pobreza, iniciando pela porta mais urgente, que é a fome”, afirma.

Dados da fome

Dados do IBGE de 2020 mostram que o País tinha 13,5 milhões de pessoas em extrema pobreza. Somando aos que estão na linha da pobreza, o número representa 25% da população brasileira. Além disso, conforme o 2° Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan), de junho de 2022, há 14 milhões a mais de brasileiros em situação de fome, desde a conclusão do estudo anterior, em 2021.

Parte do retorno do Brasil ao Mapa da Fome se dá pelo baixo investimento em programas sociais. O Governo Bolsonaro, praticamente, zerou investimentos do Alimenta Brasil. Foram R$ 89 milhões investidos até maio de 2022 e R$ 58,9 milhões em todo o ano de 2021. Para se ter uma ideia, o valor é dez vezes menor que o investido em 2012, de R$ 586 milhões destinados ao combate à fome.

Dados do IBGE de 2020 mostram que o País tinha 13,5 milhões de pessoas em extrema pobreza (Marcus Maciel/Reprodução)

O inquérito ainda aponta que mais da metade (58,7%) da população brasileira vive com insegurança alimentar, ou seja, quando há falta de acesso regular e permanente à ausência de alimentos em quantidade e qualidade suficiente para a sua sobrevivência, em algum grau: leve, moderado ou grave.

O sociólogo Luiz Antônio relembra que, entre 2015 e 2016, o País tinha 1 milhão de toneladas de arroz estocadas pelo governo federal. “De lá para cá, esses números caíram a ponto de você chegar, em 2023, e não ter um único quilo de arroz estocado”, diz.

Esses alimentos faziam parte do programa Alimenta Brasil, que, agora, estão no poder de empresas privadas. “O Governo Bolsonaro não estimulou o estoque e desmontou a estrutura de silos de armazenamento. Hoje, quem detém o estoque é a iniciativa privada, que está vendendo para o exterior, e o mais bizarro e hilário disso é que estão vendendo para Cuba, Venezuela e China [países criticados pelo atual governo]”, pontua Nascimento.

Desenvolvimento humano

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que mede a qualidade de vida das pessoas ao redor do mundo, caiu globalmente, entre os anos de 2020 e 2021, devido aos impactos da pandemia e pelas mudanças socioeconômicas em todo o planeta, conforme o relatório de Desenvolvimento Humano 2021/2022.

Perdendo uma posição no ranking de 191 países, o Brasil fechou 2021 com o IDH de 0,754, ocupando a 87ª posição no ranking. Em 2020, o País estava na 86ª posição, com índice de 0,758. Em primeiro lugar na posição está a Suíça, com IDH de 0,962 em 2021.

Além da fome, o índice pontua o acesso a bens básicos. Conforme Luiz Antônio, a pobreza se materializa na fome, mas esse não é o único problema. “Também é importante gerar empregos de qualidade, com salário-mínimo valorizado. Quando a pessoa entra no mercado de trabalho com essa garantia, as pessoas passam a gerar economia, seja construindo algo ou abrindo um mercadinho, e investindo na família, gerando economia e desenvolvimento”, pontua.

O Brasil fechou 2021 com o IDH de 0,754, ocupando a 87ª posição no ranking (Ricardo Oliveira/CENARIUM)

Para ele, as políticas econômicas de distribuição de renda são o alicerce para que a pobreza diminua outra vez. “Tem pesquisas de várias universidades do País provando a importância das políticas de compensação econômica. Nessas pesquisas, já foi comprovado que, para cada R$ 1 que o governo destina para as famílias, a economia gera até R$ 1,38”, conclui o sociólogo, apontando uma saída para o Brasil do Mapa da Fome.

“Essas ações são mitigadoras, porque a dinâmica do capitalismo atual é uma dinâmica de concentração espetacular de riqueza na mão de poucos, e não há dúvida de que a Teoria do Valor de Karl Marx mostrava isso lá atrás”, relembra o sociólogo. “Quando você tem acumulação de riqueza de um lado, do outro lado há acumulação de pobreza”, finaliza Luiz Antônio.

Pobreza

Outro aspecto da pobreza no Brasil é que a desigualdade entre as principais metrópoles escancara o problema de o País possuir dimensões continentais. Os grandes centros urbanos, localizados mais ao sul, no Rio e São Paulo, colaboram para uma maior qualidade de vida e investimentos para os Estados no entorno. O 9° Boletim Desigualdade nas Metrópoles traz dados que mostram a pobreza vivida, principalmente, em cidades do Norte e Nordeste, e mostra que os índices de menores desigualdades estão mais ao sul.

Manaus, a capital do Amazonas, encontra-se em primeiro lugar entre as metrópoles mais desiguais, com 41,8% da população em situação de miséria. Além disso, Grande São Luís (40,1%), Recife (39,7%), João Pessoa (39,2%) e Macapá (38,3%) aparecem entre as piores. Um detalhe: todas estão localizadas nas regiões Norte e Nordeste do País.

Em contraponto a esses números, os índices das metrópoles com menor desigualdade ficam localizados na região Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil: São Paulo (17,8%), Distrito Federal (15,1%), Curitiba (13,1%), Porto Alegre (11,4%) e Florianópolis (9,9%), mais próximos aos centros urbanos, onde são fixados os maiores investimentos.

Programas existentes

Atualmente, vários programas sociais de combate à pobreza existem tanto na esfera federal, quanto estadual e municipal. Na Amazônia, o Polo Industrial foi criado como uma saída para diminuir as diferenças entre as regiões e trazer investimentos para os Estados mais ao norte, bem como gerar empregos e diminuir o êxodo para as regiões ao sul.

“É paradoxal. Considerando a Zona Franca de Manaus e os empregos que ela gera. Com isso, deveria haver uma dinamização da cidade e uma distribuição de renda melhor, ou um resultado da renda média melhor”, avalia o economista Inaldo Seixas.

O economista Inaldo Seixas destaca que nem sempre a arrecadação das metrópoles condiz com o investimento revertido nelas
(Jane Coelho/Reprodução)

Segundo o especialista, a arrecadação das metrópoles, às vezes, não condiz com o investimento revertido nelas. “Manaus, por exemplo, está entre os dez maiores contribuintes para o Produto Interno Bruto (PIB) do País, e, mesmo assim, tem índices ruins de pobreza e renda. Isso é um alerta para se pensar sobre a gestão pública do Estado”, diz Seixas.

A mestra em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia Mirella Cristina Xavier Lauschner acredita que a desigualdade nas regiões Norte e Nordeste está atrelada a um problema histórico que não consegue ser combatido apenas com programas de distribuição de renda. “Hoje, há vários programas e projetos que visam ao combate à pobreza. Porém, vivemos um problema histórico, o que dificulta a resposta relevante e realmente eficiente nesse processo”, avalia.

Para a especialista, “esses programas não conseguem retirar a população dessa situação de miserabilidade e de extrema pobreza que se encontram, havendo, então, a necessidade de políticas públicas que visem ao fortalecimento da economia e à geração de emprego e renda”.

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