Indigenista Ricardo Rao tenta reverter exoneração da Funai para voltar ao Brasil

O indigenista Ricardo Rao quando era agente da Funai; atualmente, ele vive em autoexílio em Roma (ITA), após passar dois anos na Noruega - (Arquivo pessoal)

Da Revista Cenarium*

MANAUS – Exilado na Europa desde o fim de 2019, quando divulgou um dossiê denunciando crimes contra povos indígenas com envolvimento de policiais, o indigenista Ricardo Henrique Rao, 52, quer voltar ao Brasil. Para isso, ele tenta agora reverter sua exoneração da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), assinada em 2020.

Colega de Bruno Pereira —assassinado junto com o jornalista britânico Dom Phillips no Vale do Javari— no curso de formação de política indigenista, Rao diz que provavelmente teria o mesmo destino do antigo companheiro, caso tivesse permanecido no Brasil após a realização das denúncias.

Ricardo Rao argumenta que seu desligamento da Funai, feito em uma portaria assinada em 2020 pelo então chefe do órgão, Marcelo Xavier, foi irregular. O indigenista pede que o ministro da Justiça, Flávio Dino, e a atual chefe da fundação, Joenia Wapichana, revejam a decisão.

PUBLICIDADE
O indigenista Ricardo Rao quando era agente da Funai
O indigenista Ricardo Rao quando era agente da Funai; atualmente, ele vive em autoexílio em Roma (ITA), após passar dois anos na Noruega – Arquivo pessoal

“Eu quero meu cargo de volta. Eu sou concursado e a minha exoneração foi totalmente irregular. Antes de sair do país, eu pedi uma licença sem remuneração”, diz Rao. “Todo servidor tem direito à licença de dois anos. O Bruno, quando foi morto, estava com essa licença. Eu pedi na mesma época que ele, só que a minha foi negada”, completa.

Na avaliação dele, o pedido de afastamento temporário foi negado porque, entre lideranças da própria Funai, havia interesse de que ele fosse forçado a permanecer trabalhando e tendo contato com os policiais que denunciou no dossiê.

“Eles devem ter pensado: ‘Alguma hora alguém mata esse”, considera. “O Bruno [Pereira] já era importante demais. Por isso, deram à licença para ele”, afirma.

Formado em direito, Rao entrou na Funai, em 2010, aos 40 anos. A decisão de prestar o concurso foi influenciada pela experiência da mãe, que havia trabalhado como enfermeira em aldeias indígenas.

O pedido de nulidade da exoneração de Ricardo Rao, feito inicialmente por via administrativa, já foi apresentado por sua advogada. O objetivo é chegar a um acordo amigável com o governo.

“Pedimos um reexame da situação, porque ele foi exonerado por conta da perseguição política. Ele conseguindo a reintegração, ele consegue ter uma vida digna aqui no Brasil”, afirma a advogada Talitha Camargo.

Selfie de homem
O indigenista Ricardo Rao, exonerado da Funai e autoexilado na Europa – Arquivo pessoal

Em nota à Folha, o Ministério da Justiça reconheceu que há tratativas em andamento. “Recebemos o pedido de análise do caso, sensibilizamos-nos com a situação e estamos enviando aos ministérios e órgãos competentes para deliberação.”

Procurada, a Funai não respondeu ao contato da reportagem.

Além da reintegração no cargo, a defesa de Rao pede sua inclusão em um programa de proteção. Sua advogada argumenta que as medidas são necessárias por causa das várias denúncias, incluindo tráfico de madeira e atuação de milícias em terras indígenas, feitas pelo indigenista.

Em julho de 2022, Ricardo Rao realizou um protesto durante um evento com a participação do então presidente da Funai em Madri. Na ocasião, ele chamou Marcelo Xavier de miliciano e assassino, além de responsabilizá-lo pelo assassinato de Bruno Pereira e Dom Philips.

As imagens da ação, que mostram Xavier deixando o local em meio ao protesto, viralizaram nas redes sociais. Com isso, as ameaças a Rao ganharam novo fôlego, passando também a serem dirigidas à sua mulher e filho, que permanecem no Brasil.

Presidente da Funai abandona evento na Europa após protesto de indigenista
Marcelo Xavier (ao centro, de óculos e terno) se retira de assembleia sobre povos indígenas em Madri, diante de discurso de Ricardo Rao – Reprodução/Twitter @RICARDORAO7

Uma semana após o embate com o antigo chefe, Rao sofreu um infarto e precisou passar por uma cirurgia de emergência. Agora recuperado, ele atribuiu o problema de saúde à preocupação e ao estresse com a segurança da família.

O indigenista reconhece que se expôs muito, atraindo a atenção de grupos perigosos. Ele diz, no entanto, que quer retornar aos trabalhos de campo.

“Eu quero viver em aldeia, voltar para o meio dos indígenas”, afirma Rao, que admite, no entanto, que não poderá retornar ao Maranhão, onde fez as denúncias contra policiais locais.

Para ele, a saída de Jair Bolsonaro (PL) da Presidência da República não representou o fim do bolsonarismo na Fundação Nacional dos Povos Indígenas. “A Funai está tão contaminada quando a PRF [Polícia Rodoviária Federal]”, compara.

Rao afirma que o trabalho de retorno à normalidade na instituição exigirá ações firmes, e teme que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sustentado em uma coalizão de partidos muito distintos, possa não conseguir realizá-las.

Base da Funai: na entrada na Terra Indígena

“Não dá para achar que era só o Bolsonaro sair que ia ser um oba-oba, com os exilados voltando e tudo ficando bem. Não é assim”, relata. “Hoje eu ainda tenho medo de chegar a Cumbica e não sair vivo, ou de ‘encontrarem’ 30 kg de heroína na minha mala.”

Mesmo afastado do Brasil, Ricardo Rao segue acompanhando com atenção a situação nas aldeias. O indigenista se emocionou ao falar da crise dos yanomamis e do assassinato de jovens indígenas da etnia pataxó na Bahia.

“É uma tragédia. Eu tenho uma mágoa muito grande das pessoas que deixaram isso chegar à situação em que se está, não era para ter sido assim.”

Cidadão italiano, Rao vive agora em Roma. Sem rendimentos, acabou abrigado em uma ocupação de um grupo de sem-tetos na capital italiana. Enquanto aguarda o desenvolvimento de seu caso no Brasil, o indigenista conseguiu um trabalho como cuidador e acompanhante de um senhor idoso.

O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.

(*) Com informações da Folhapress

PUBLICIDADE

O que você achou deste conteúdo?

Compartilhe:

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie. Leia as perguntas mais frequentes para saber o que é impróprio ou ilegal.