Mineração em terra indígena vira embate entre universidade e organização

Manifestação do povo Mura na cidade de Autazes, interior do Amazonas (J. Rosha/Cimi)
Mencius Melo – Da Revista Cenarium

MANAUS – A Universidade Federal do Amazonas (Ufam) emitiu um posicionamento público no domingo, 21, sobre a assinatura de um protocolo de elaboração de um Plano Ambiental Básico (PAB), para mineração em Terra Indígena (TI) do povo Mura, criticado pela Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi), em carta aberta na quinta-feira, 18.

A Famddi se posiciona contrária ao projeto de exploração de potássio – mineral usado para a produção de fertilizantes – e critica a assinatura do termo, assinado entre as partes no dia 23 de março de 2023 e publicado no Diário Oficial da União (DOU) em 27 de março de 2023, mesmo dia de divulgação no portal da Ufam.

Em um trecho do texto, a organização indigenista diz que a universidade feriu os princípios históricos da instituição e da própria missão institucional. “A Ufam está instalada em um Estado que concentra a maior presença de povos e línguas indígenas, o que se constitui em riqueza sociocultural que deve ter, por parte da universidade, atenção especial na produção das atividades de ensino, pesquisa e extensão”, declarou.

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Documento em resposta foi postado no portal da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) (Reprodução/Internet)

Participação

Procurado pela REVISTA CENARIUM, o reitor da Ufam, Silvyo Puga, enviou documento publicado pela instituição, que se posicionou informando que trabalha para elaborar um plano ambiental que atenda as demandas das cidades e dos povos tradicionais. “Para a efetivação e execução do Projeto Autazes Sustentável, a Ufam anuiu, no documento, e formalizou a sua participação dentro do Protocolo de Intenções junto à Empresa Potássio do Brasil“, diz trecho.

A jazida de potássio na área do município de Autazes, no Amazonas, é considerada a maior do Brasil (Reprodução/Mundo Educação)

A Ufam continuou em sua defesa, alegando que atestou a necessidade de se ouvir o povo Mura e que, desde 2013, atestou que os povos Mura não foram ouvidos sobre os impactos da obra sobre o seu coletivo e que não tinha estudo indígena, motivo pelo qual foi suspensa a licença de instalação da atividade mineradora na região.

Ao final do documento, a instituição refirmou seu papel no contexto científico da Amazônia, onde ressalta que, há mais de 114 anos, vem “formando recursos humanos e gerando conhecimento científico e tecnológico, fomentando o desenvolvimento e respeitando todas as especificidades locais”. Ainda de acordo com a nota, a Ufam reafirma o seu compromisso histórico de dialogar com os povos originários”, finalizou.

Veja as notas completas:

Ufam

A Universidade Federal do Amazonas vem a público informar à sociedade amazônica que, aproximadamente, uma centena de cientistas da instituição trabalha para elaborar, com imensa responsabilidade e comprovada expertise, o Plano Básico Ambiental (PBA) do Projeto Autazes Sustentável, que visa transformar os municípios de Autazes e Careiro da Várzea em municípios autossustentáveis, concebidos para atender às cidades e aos povos tradicionais. Para a efetivação e execução do Projeto Autazes Sustentável, a Ufam anuiu no documento e formalizou a sua participação dentro do Protocolo de Intenções junto à Empresa Potássio do Brasil. Diante da assinatura do Protocolo de Intenções, é necessário pontuar:

Em 2013, a Ufam, solicitada pelo Ministério Público Federal, analisou o EIA/RIMA elaborado pela Empresa Golder Associates e na devolução da referida análise, atestou que os povos Mura não foram ouvidos sobre os impactos da obra sobre o seu coletivo e que não tinha estudo indígena no EIA/RIMA, motivo da suspensão da Licença de Instalação.

Cientistas da Universidade Federal do Amazonas são os responsáveis pela maioria dos EIA/RIMA e PBAS dos empreendimentos de porte similar aos da Potássio do Brasil, e em 100% dos estudos houve a necessidade de cumprimento da lei, no sentido de não avalizar intervenções sobre unidades de conservação e/ou terras indígenas, a exemplo do mais recente TCT.

Com mais de 114 anos de história na região amazônica, formando recursos humanos e gerando conhecimento científico e tecnológico, fomentando o desenvolvimento e respeitando todas as especificidades locais, a Ufam reafirma o seu compromisso histórico de dialogar com os povos originários, que foi e permanecerá sendo o maior valor da instituição.

Administração Superior da Universidade Federal do Amazonas

Manaus, 21 de maio de 2023

Famddi

A Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (FAMDDI) manifesta, publicamente, estranheza e indignação quanto à posição de adesão e chancela à mineração em territórios indígenas, assumida pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

A FAMDDI – movimento da sociedade civil composto por organizações indígenas, indigenistas e outros movimentos sociais na Amazônia – nasceu em dezembro de 2018, em espaço público e simbólico da Ufam (no hall do Instituto de Filosofia, Ciência Humanas e Sociais-IFCHS, Campus Norte), para, de forma articulada, manter a atenção e a mobilização na defesa dos direitos indígenas.

A atitude da direção da Ufam fere princípios históricos da universidade e da própria missão institucional que propugna a valorização da interculturalidade como indutora de excelência acadêmica. A Ufam está instalada em um Estado que concentra a maior presença de povos e línguas indígenas, o que se constitui em riqueza sociocultural que deve ter, por parte da universidade, atenção especial na produção das atividades de ensino, pesquisa e extensão.

O posicionamento institucional da universidade está claramente expresso na assinatura do Protocolo de Intenções entre Ufam e a empresa de mineração Potássio do Brasil, no dia 23 de março de 2023, publicado no DOU em 27 de março de 2023 e publicizado no mesmo dia no Portal da Ufam.

Na referida matéria, o reitor manifesta concordância e defesa da mineração em territórios indígenas, ao afirmar que o pretenso empreendimento da Potássio do Brasil (que, se efetivado, atingirá terras do povo Mura): “É um projeto estratégico para o Estado e para o País, e estaremos atuando de forma decisiva”. E complementa, prometendo, com base em supervalorização do poder da academia e de seus representantes: “Toda expectativa em torno da questão social e ambiental será sanada pelo acompanhamento da Ufam, que usará todas as suas competências para tal finalidade”.

A matéria foi replicada em vários órgãos da mídia e a posição da direção da Ufam repetida em outras ocasiões, com destaque na primeira reunião ordinária do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Planejamento e Administração das Instituições Federais de Ensino Superior (FORPLAD), ocorrida em Manaus entre os dias 12 e 14 de abril deste ano. Na abertura do evento, o reitor da Ufam apresentou como “grande feito” institucional o acordo assinado pela universidade com a Potássio do Brasil, informando que a empresa mineradora “escolheu a Ufam… para que o empreendimento avançasse”.

Em entrevista ao Programa “Sim e Não”, do Jornal A Crítica, no dia 4 de maio de 2023, o reitor reafirma a posição oficial da Ufam: “a presença da Ufam é a total garantia para populações tradicionais que elas serão respeitadas”.

A FAMDDI, por meio desta Carta Aberta, denuncia e questiona o tipo de envolvimento direto da Ufam ao chancelar e legitimar a pretendida ação da Potássio do Brasil, abstendo-se de questionar as estratégias ilegais de pressão sobre as comunidades Mura adotadas pela referida empresa. Tanto que representantes do grupo empresarial estão proibidos, pela Justiça, de circularem nos territórios indígenas desse povo, sem o consentimento dos Mura. A posição adotada pela Ufam corrobora com um projeto que poderá abrir precedente para a mineração em territórios indígenas, no geral, afetando não só o povo Mura, mas outros tantos povos indígenas que vivem situações de ameaças similares.

Em recente decisão, a Justiça Federal (1ª Vara Federal Cível da SJAM), no dia 3 de abril de 2023, ratifica “determinação anterior, direcionada à empresa requerida Potássio do Brasil, que deve cumprir obrigação de não-fazer consistente em não circular nas Terras Indígenas Mura sem o consentimento do respectivo povo”. A decisão cita a Nota de Repúdio do CIM – Conselho Indígena Mura, em que “repudiam as medidas adotadas pela Guarda Municipal de Autazes, que agiu a pedido da empresa Potássio do Brasil, de modo a intimidar os indígenas Mura dentro de seu território, sendo que os indígenas não querem a empresa ré circulando em seu território ou colocando placas”. E delibera também que “No art. 20 da Constituição Federal de 1988, está estabelecido que as terras indígenas são bens da União, sendo reconhecidas aos indígenas a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Entende o juízo que os direitos dos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam são de natureza originária. Isso significa que são anteriores à formação do próprio Estado, existindo independentemente de qualquer reconhecimento oficial”.

Por todo o exposto, pela função da instituição universidade, em especial, de uma universidade amazônica, os coletivos que compõem a FAMDDI conclamam a direção da Ufam a refletir e rever o seu posicionamento e participação nessa questão. Que a Ufam inaugure, no Estado do Amazonas, – no momento em que ameaças e atentados aos povos indígenas se dão continuamente, e mortes de indígenas são reais – outra conduta constituidora da base de uma política institucional de firme parceria e de respeito aos povos originários, canalizando esforços e protocolos acadêmicos na atenção, escuta e defesa dos direitos indígenas.

Manaus, 18 de maio de 2023

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