Sobrevivência dos Mura ameaçada pela exploração de potássio em Autazes

Manifestação conta a mineração. (J. Rosha /Cimi Norte I)
Ademir Ramos – Especial para Cenarium**

O campo pode parecer minado. Mas, resolvi enfrentá-lo, qualificando o movimento dos seus atores a partir das ações do Projeto Autazes, que tem por meta a exploração de minério de potássio a 800 metros de profundidade no município de Autazes, a 113 Km de Manaus, circunscrito a um determinado território reclamado em juízo pelo povo Mura com direito à riqueza do solo, dos rios e dos lagos nas terras tradicionalmente ocupadas por este povo.

A questão é difusa e requer dos agentes em disputas um intenso diálogo entre as partes sustentada por múltiplos interesses que perpassam por formas de saber e conhecimento antropológico, jurídico, etnohistórico, econômico e, sobretudo, de políticas públicas ajustadas à garantia dos Direitos Fundamentais do povo Mura nos termos da Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) n°169, assentada nos ditames da Constituição de 1988, promotora da autonomia dos povos indígenas quanto à escolha de prioridades à respeito da formulação de suas políticas de etnodesenvolvimento.

Frente aos fatos somos orientados a analisar o empreendimento como um todo. O Projeto Potássio Amazonas – Autazes, da mineradora Potássio do Brasil, faz constar em seu Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) que sua meta é explorar e beneficiar minério de potássio (silvinita) em Autazes. O montante desta produção de concentrado de cloreto de potássio, com pureza de 95,5%, é mais de 2,1 milhões de toneladas por ano.

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Embora a empresa tenha previsto no RIMA os possíveis impactos socioambientais seguidos de ações mitigadoras, sabe-se também que “gato escaldado tem medo de água fria”, o que nos faz pensar sobre os graves conflitos vivenciados entre mineradoras e povos indígenas na Amazônia, quando as tratativas entre as partes não asseguram sustentabilidade do presente e futuro da população indígena e das comunidades tradicionais atingidas.

No Amazonas, entre outros conflitos, registram-se embate dos Waimiri Atroari com a mineradora Paranapanema. No Pará, atenção voltou-se para o grande projeto Carajás, que mereceu da professora e antropóloga da Universidade de São Paulo, Lux Vidal (CARAJAS: 1986), um parecer denso sobre a matéria, fundamentado no seguinte enunciado que até hoje serve-nos de parâmetro para analisar e decidir sobre a autorização de determinado projeto mineral em terra indígena e demais comunidade das florestas:

“Não será inútil repetir que qualquer projeto somente poderá trazer vantagem na medida em que a política que oriente o seu desenvolvimento seja prioritariamente dirigida em benefício das populações que vivem nas áreas sob sua influência e que, afinal, todo homem, em qualquer dessas dimensões ou realidade socioculturais, deve ser visto como beneficiário das mudanças econômicas e não como uma vítima”.

Com a mesma determinação valho-me também da vasta experiência de campo do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, recorrendo à sua obra clássica – O Índio e o mundo dos Brancos (1964). Para ele “qualquer estudo sobre índios no Brasil que objetive revelar a sua verdadeira situação não poderá deixar de focalizar o caráter das frentes desbravadoras que ao alcançam, hoje, nos seus mais distantes redutos”.

Mas, para o presidente da Potássio do Brasil, Adriano Espeschit, a realidade é outra, é o que se deduz da sua fala, na Conferência Internacional Brazil Mining, março de 2023, em Nova Lima (MG), quando comunicou aos investidores que: “O Projeto Potássio Autazes será um marco no setor produtivo do Brasil, especialmente porque vai fortalecer o nosso agronegócio, proporcionando segurança alimentar ao país, e, ao mesmo tempo, vai promover o desenvolvimento sustentável do município de Autazes, onde será implantado”, diz o chefe da mineradora.

De toda forma, sabe-se que a mineração em terra indígena foi e tem sido um dos temas mais controvertidos desde os tempos da Constituinte. Contudo, apesar de toda pressão da indústria minerária e dos garimpeiros, a Constituição de 1988 garantiu condições específicas e restritivas para a pesquisa e lavra mineral nos território indígenas de acordo com os artigos 176, 1° e 231, 3°.

O Projeto Autazes, antes de fortalecer o agronegócio deve, necessariamente, ser enquadrado na forma da lei, ouvindo, os principais interessados, que são os Mura e demais comunitários do entorno do projeto por meio de sua representação legal e legítima como é o caso do Conselho Indígena Mura, com apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e demais representações do movimento social pautado numa proposta de Programa de Etnodesenvolvimento ou Desenvolvimento Comunitário seguidos de objetivos e metas a curto e longo prazo, contando com a participação dos indígenas e não indígenas no processo de gestão das ações centradas na saúde, educação, produção e sustentabilidade, vigilância territorial e proteção ambiental, administração, consultoria e apoio operacional, documentação e memória, consignados na forma de convenio com validade no mínimo de 25 anos, sendo renovado em tempo, como fez a Funai com a Eletronorte para salvaguardar os direitos dos Waimiri Atroari, em contrapartida dos danos causados pela construção da hidrelétrica de Balbina que inundou mais de 30 mil hectares do território indígena desta gente.

A empresa por sua vez, não pode e não deve disseminar a discórdia entre indígena e não indígena com propósito de controlar e dominar o território em disputa. Sabendo que no passado, não muito distante, as terras indígenas eram vendidas e com elas seus ocupantes tradicionais. O registro deste esbulho faz parte da dissertação da antropóloga Adriana Romano Athila (1988):

“Há aproximadamente três gerações ascendentes dos Mura atuais, seus parentes foram intimidados a acuados para que os usurpadores se tornassem seus patrões em condições praticamente escravas. Estes patrões mantinham os índios como seus devedores eternos através de trocas desleais, fornecendo-lhes alimentos ou algum tipo de mercadoria, como remédios, roupas e bebida”. Um dos mais temidos patrões dos Mura, em regime de barracão, foi o tal Luiz José Soares, conhecido pelos Mura da região, como “coronel Soares”, entre seus atos abusivos e violentos no tronco incluem-se as chibatadas contadas até hoje pelos velhos Mura.

Atualmente, por dever Constitucional, o cenário é absolutamente diferente, os Mura contam com a defesa do Ministério Público Federal – MPF (Art. 129, V) para fazer valer seus direitos fundamentais prevalecendo-se dos interesses comunitários dos principais interessados. No caso específico, o MPF, no dia 28 de abril do ano em curso, depois de ouvir algumas lideranças Mura sobre conflito com a mineradora nas terras indígenas Soares (coronel Soares) e Urucurituba, tradicionalmente ocupadas pelos Mura, a cerca de 200 anos, resolveu entrar com Ação Civil Pública para demarcação da chamada Terra Indígena Soares/Urucurituba.

Ademais, aguarda também posição da Justiça Federal do Amazonas sobre o pedido de suspensão da consulta pública junto às comunidades Mura enquanto não houver definição sobre o processo de demarcação do território indígena Soares/Urucurituba contrário à Potássio do Brasil que insiste não reconhecer a legitimidade do direito dos Mura sob estas terras.

As negociações foram suspensas, mas, considerando que a conjuntura política é outra, lideranças do Conselho Indígena Mura, em articulação com o Ministério dos Povos Indígenas do governo Luiz Inácio Lula da Silva, estão se mobilizando para retomar as discussões focadas na formulação de um Programa de Etnodesenvolvimento sustentável que seja bancado pela Potássio do Brasil, nos termos do Programa Waimiri Atroari, que é sem dúvida uma referência nacional de política de desenvolvimento humano no Amazonas.

(*) Ademir Ramos é professor, antropólogo, coordenador do projeto jaraqui e do Núcleo de Cultura Política do Amazonas, vinculado ao Departamento de Ciências Sociais da Ufam.
(**) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.
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