Tempo de retomada: especialistas apontam caminhos para reconstrução de pilares enfraquecidos no Brasil

Números mostram retrocessos no Brasil em áreas cruciais, como combate à fome e à pobreza, meio ambiente, povos tradicionais, saúde, economia e defesa da democracia (Mateus Moura/CENARIUM)
Priscilla Peixoto – Da Revista Cenarium

MANAUS (AM) – O Brasil chegou ao final de 2022 com números que desenham um quadro de retrocessos e a necessidade de retomada em áreas cruciais. Recordes na devastação da Amazônia; perda de recursos em órgãos ambientais; aumento de milhões de famintos e miseráveis; índices econômicos desfavoráveis; queda nas taxas de imunização e desassistência a povos tradicionais somam-se a investidas antidemocráticas. Diante deste panorama, a REVISTA CENARIUM ouviu especialistas que indicaram caminhos para a reconstrução a partir de medidas de reafirmação da democracia, reestruturação ambiental, retomada da crença na ciência, combate à fome e à miséria, reforço à proteção de indígenas e quilombolas e aquecimento econômico com a geração de emprego e renda.

A reestruturação de pilares enfraquecidos nos últimos anos será uma das missões do novo governo que conduzirá o País a partir de 2023, apontam ambientalistas, economistas, sociólogos, analistas políticos, lideranças indígenas e do movimento negro e membros da equipe de transição. Para os especialistas ouvidos pela reportagem, o Brasil ainda sente os impactos socioeconômicos da pandemia de Covid-19, que matou, aproximadamente, 700 mil pessoas no País, com o agravante de omissões governamentais e o discurso negacionista.

Negacionismo que reflete na baixa cobertura vacinal não só para a Covid-19, mas para outras doenças. Em 2018, segundo dados do Conselho Nacional de Saúde, só a vacina contra a paralisia infantil atingiu 90% da população. Atualmente, o índice dessa mesma vacina caiu para 52%.

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A reafirmação da democracia será um dos focos do novo governo (Reprodução/Internet)

Fome

Os dados do retrocesso também estão nos números da pobreza e da fome. Após oito anos, o Brasil voltou ao mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU), com mais de 33 milhões de pessoas sem ter o que comer, diariamente, segundo inquérito elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Em 2018, essa população somava 10,3 milhões de pessoas. Há, ainda, 62,5 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados no início de dezembro.

Na economia, estudo encomendado pelo CNN Brasil Business mostra que o País partiu de uma participação de 4,3% no Produto Interno Bruto (PIB) internacional, em 1980, para 2,3%, em 2022. O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) até aponta uma inflação para níveis considerados aceitáveis, com 6,0%, mas, em linhas gerais, não houve grandes avanços econômicos, e o País apresenta, ainda, altos índices de desemprego e endividamento das famílias, com 9,5 milhões de brasileiros desempregados e 78,9% das famílias endividadas, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O País apresenta, ainda, altos índices de desemprego e endividamento das famílias (Reprodução/Internet)

Meio Ambiente

Juntam-se à pobreza e à fome, economia enfraquecida e à queda nas taxas de imunização, uma maior vulnerabilidade do meio ambiente. Dados divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) apontam que a devastação na Amazônia chegou a 555 quilômetros quadrados no mês de novembro deste ano, resultando na segunda pior marca da série histórica para o mês, atrás apenas do mesmo período, em 2020, quando foram desmatados 563 quilômetros quadrados.

Ambos os recordes foram batidos no governo de Jair Bolsonaro. Nos últimos quatro anos, o desmatamento na região aumentou 60%, enquanto as multas aplicadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) caíram 38%, um exemplo do enfraquecimento dos órgãos ambientais e das políticas de fiscalização.

Em outro aspecto, os povos tradicionais, que deveriam ser protegidos pelo Estado, também sofreram com a falta de um olhar acolhedor e humano das políticas sociais. Cortes drásticos de recursos exemplificam o que indígenas e quilombolas chamaram de “política de extermínio”. Em janeiro deste ano, o governo federal cortou R$ 40 milhões do saneamento básico de comunidades rurais e quilombolas. Houve, ainda, cortes de R$ 773 mil para a demarcação de terras indígenas realizada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e de R$ 85 mil para as ações de reconhecimento e indenização de territórios de quilombolas.

O combate ao desmatamento é uma das prioridades do novo governo federal (Reprodução/Internet)

O Brasil passa ainda por um momento de fragilização da democracia, com o resultado das eleições, o processo de votação e a Justiça Eleitoral sendo questionados por grupos que defendem a intervenção militar, discurso de ódio contra instituições que alicerçam o Estado democrático de direito, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional e ataques à imprensa, entre outras investidas antidemocráticas vistas com preocupação pelo próximo governo e organismos internacionais.

Papéis invertidos

Para o analista político e cientista social Marcelo Seráfico, os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro radicalizaram a destruição institucional das conquistas formais da Constituição Federal de 1988. Isto é, no decorrer de seus mandatos, direitos foram transformados em “privilégios” – como no caso da contrarreforma trabalhista de Temer – e instituições que deveriam executar políticas de garantia de direitos foram fragilizadas ou tiveram seus papéis invertidos, entre elas, Funai, Fundação Palmares, Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), instituições de ensino superior e Sistema Único de Saúde (SUS), passando a agir contra os objetivos para os quais foram criadas.

Daí não ser exagerado afirmar que ambos, Temer e Bolsonaro, mais particularmente o último, foram protagonistas de governos antipopulares e antinacionais, isto é, formularam e executaram políticas que favoreceram, exclusivamente, elites, mais ou menos, integradas ao processo de transnacionalização da economia”, explica Seráfico.

Analista político e cientista social Marcelo Seráfico (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Caminhos

Para o analista, as medidas mais urgentes para a reconstrução de áreas enfraquecidas nos últimos anos são a reversão do desmonte institucional, a adoção de práticas imediatas de recomposição da renda dos trabalhadores e de distribuição da riqueza e o respeito às organizações da sociedade civil (sindicatos, coletivos e movimentos), com estímulo a sua participação nos debates e decisões sobre as orientações do Estado.

Seráfico explica que, para a recomposição da renda do trabalhador, é preciso orientar a política salarial no sentido do aumento da participação dos salários no PIB e encaminhar a política orçamentária no sentido da ampliação e melhoria dos serviços públicos. O analista afirma, ainda, que “o respeito às organizações da sociedade civil (sindicatos, coletivos e movimentos) é algo cujo propósito é minimizar ou eliminar o viés elitista da formulação das políticas econômicas e sociais, característico das camadas altas e médias da sociedade e da tecnocracia“.

Para o doutor em Educação e mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Adan Silva, ainda que os primeiros passos para uma reconstrução mais positiva do País sejam dados, por conta do cenário que considera “caótico”, dificilmente, tudo será revertido em apenas quatro anos. Conforme Adan, a medida imediata tem que ser focada no diálogo, o que já iniciou nas construções dos grupos de transição para a ocupação dos ministérios. Silva é também especialista em História da Saúde na Amazônia, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pesquisador em Culturas Populares, diversidade sexual e africanidades na Amazônia.

Acredito que as primeiras ações estão, justamente, no poder do diálogo. Notamos que os movimentos sociais que ajudaram a eleger Luiz Inácio Lula da Silva devem ser ouvidos. Ter representantes das pessoas que a sociedade insiste em minorizar dentro do governo. Que traga a diversidade, incluindo já nesse período de transição”, afirmou Silva.

‘Acredito que as primeiras ações estão, justamente, no poder do diálogo’, Adan Silva, doutor em Educação (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Outra medida apontada como caminho para a reconstrução de uma política afirmativa de entendimento e democrática, segundo Silva, é a proposta de criação do Ministério dos Povos Originários. “Esse é um passo que acredito ser um verdadeiro acerto. Agora, temos que devolver ao povo negro tudo que foi vilipendiado. A Fundação Palmares precisa voltar a ser conduzida ao que se propõe, por pessoas que representam a militância do movimento negro. Já temos Margareth Menezes assumindo o Ministério da Cultura, que voltou para o fomento da economia criativa. Já consigo, nesse pouco período, ver um bom caminho a ser traçado”, analisa o doutor.

Amazônia

Adan ressalta ainda como prioridade a Amazônia que, segundo ele, precisa ser reconhecida em toda a sua potência. “Precisamos ser reconhecidos pela potência que somos, pelo nosso polo industrial que merece mais respeito, uma vez que foi, constantemente, ameaçado por essa gestão. O novo governo precisa notar nossas dificuldades de acesso, de sermos entendidos enquanto população que está produzindo ciência, que aqui vivem povos tradicionais, quilombolas, indígenas. Temos quebradores de coco-babaçu, o castanheiro, o pescador e uma série de tipos humanos e que, muitas vezes, sequer, são reconhecidos como gente que pensa, produz, que tem direito de ser visto como gente no Brasil”, concluiu.

Transição

A equipe de transição de Lula é a maior já nomeada, desde 2002. Até o início de dezembro, o grupo de transição do presidente contabilizava 913 nomes. A maioria dos integrantes são voluntários. Até o momento, 22 pessoas foram nomeadas para cargos remunerados. São permitidas, pela legislação, até 50 vagas com salários.

Nilmário Miranda, no grupo dos Direitos Humanos, o cientista político Emir Sader, no grupo técnico de Comunicação Social, a ex-presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) Suely Araújo, no setor de Meio Ambiente, junto com o ex-superintendente da Polícia Federal (PF) no Amazonas Alexandre Saraiva, e a presidente Nacional do Instituto Afro Origem – Inaô, Valneide Nascimento dos Santos, no grupo de Igualdade Racial, são alguns dos nomes escolhidos para compor a equipe de transição governamental.

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