Aborto: qual direito à vida estão defendendo nas tribunas?

Manifestação pela legalização do aborto (Rovena Rosa/Agência Brasil)
Luciana Santos – Especial para Revista Cenarium Amazônia**

MANAUS (AM) – Há temas que desencadeiam sempre o mesmo teatro. Hoje, li sobre a pressão de parlamentares para que o ministro Barroso não coloque em pauta no STF a questão da descriminalização do aborto e fiquei pensando: como seria interessante a mesma iniciativa e dureza nos discursos para a garantia dos direitos já legalmente previstos às crianças e adolescentes. Sim, porque esse nascituro tão defendido nas tribunas, se chegar ao mundo e não morrer logo após o parto, ele vai crescer e precisar de inúmeros serviços e políticas públicas que andam bem aquém do que seria aceitável para o pleno desenvolvimento de um ser humano.

E a crítica não é só para os que transitam no Congresso Nacional, falo também sobre aqueles que possuem assentos nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais. Quantos políticos você conhece que fiscalizaram e cobraram, por exemplo, que as crianças tenham vagas em creches públicas?  Aqui em Manaus chegou-se ao absurdo de ser anunciado o sorteio de vagas, quando a lei determina que o acesso seja para todos.

E sobre propostas de leis, quais entre as aprovadas recentemente você lembra que tenham em seu objeto algo que de fato impacte positivamente na vida de crianças e adolescentes? Você, como cidadão, alguma vez foi convidado para uma audiência pública que debatesse alguma lei destinada a esse público em específico? Muito provavelmente não, porque não se tem uma cultura de convidar a sociedade civil organizada para debater projetos de lei. As leis, em geral, são criadas (ou copiadas) nos gabinetes e protocoladas para seguirem a tramitação exigida. E se essa ação “de cima para baixo” resultasse em benefícios para a população seria maravilhoso. O problema é que o que se percebe é uma enxurrada de leis “florzinhas” que servem apenas para dar volume aos índices de produção legislativa.

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E por falar em número, como forma de ajudar os senhores parlamentares locais, já que moro no Amazonas, vou citar apenas quatro índices que obtive no site do Unicef para uma recente entrevista que fiz no Cenarium Diversidade (inclusive, parabenizo a agência pelo trabalho de monitoramento desenvolvido) e que demonstram que algo não vai bem: oabandono escolar nos anos finais do ensino médio é, na média nacional, de 6,5% e, no Amazonas, é de 8,2%; a porcentagem de escolas públicas da educação básica com acesso à água é de apenas 21%; a porcentagem de escolas públicas da educação básica com acesso a esgoto é de 8%; e o Amazonas ocupa o sexto lugar no ranking de homicídios de crianças e adolescentes de 10 a 19 anos.

Vejo os números e penso: cadê os parlamentares “pró-vida” que não estão fiscalizando a aplicação de políticas públicas? E não podemos deixar de citar a questão da subnotificação e também da interseccionalidade, que podem mostrar um cenário muito pior, aquele que se tenta jogar para debaixo do tapete, que se rejeita, mas que está explícito nos sinais de trânsito pedindo algum trocado. Como mulher preta, não posso deixar de lembrar que as crianças e adolescentes que mais são vítimas de mortes violentas são as negras. São elas e as indígenas também que menos tem acesso à saúde, educação e lazer. São crianças que nem são vistas como sujeitos de direito. Não é a toa que são chamadas de “menores” em programas de tv sensacionalistas (e racistas) e amargam a espera por uma família adotiva que nunca virá.

A discussão sobre o aborto também passa por essas nuances, porque essas pessoas vão nascer e não vão ter seus direitos respeitados pelos Estados, tampouco por esses mesmos atores políticos (percebi, agora, que o termo cai como uma luva) que dizem estar lutando pelo direito à vida. E se fossem seus filhos vivendo uma vida sem nenhum tipo de dignidade? Muitas mulheres, por temerem que seus filhos virem estatísticas, buscam, sim, o aborto e eu não as critico, muito pelo contrário. Só sendo mulher para saber como é duro viver em uma sociedade machista como a brasileira; sociedade esta que é composta, majoritariamente, por mães solos, porque ou foram abandonadas (e os filhos também) ou tiveram seus companheiros assassinados.

Então, senhores, diminuam as encenações dedicadas aos seus currais eleitorais e busquem não só conhecer melhor a realidade da população que representam, como também “arregassem as mangas” para defender, de fato, o direito à vida.

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(*) Luciana Santos é jornalista e advogada, mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Público, Direitos Humanos e Processo Civil, Africanidades e Cultura Afro-brasileira e possui MBA em Marketing e MBA em Gestão empresarial.
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.
Revisado por Adriana Gonzaga
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