Conselho de Igualdade Racial, capitães do mato e uma mestiçagem sem mistura

Movimentos sociais em buscas de direitos (Arquivo/Agência Brasil)
Luciana Santos – Especial para Revista Cenarium**

Os novos integrantes do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Cepir) foram eleitos na última segunda-feira, 31, em eleição realizada na sede da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc). Essa é a segunda composição do Conselho, que durante anos foi sonho e luta constante dos Movimentos Negros do Amazonas. Ressalto esse protagonismo do movimento social ligado à negritude porque outros tentaram e ainda tentam se apropriar dessas ações e conquistas. E para explicar como isso se dá, resgato a situação ocorrida na posse da composição anterior do Conselho, fato que foi noticiado aqui na Cenarium e que acompanhei pessoalmente, à época, como membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB-AM.

Em 9 de novembro de 2021, uma cerimônia de posse foi organizada pela Sejusc, nas dependências da Escola do Legislativo da Assembleia Legislativa do Amazonas, sem que parte dos eleitos pelos movimentos sociais para compor o Cepir, assim como os indicados pelas instituições públicas que possuem assento no Conselho (o Cepir é formado por 24 membros, de maneira paritária) fossem avisados com antecedência do ato. Alguns receberam o convite de madrugada, sendo que a tal cerimônia estava marcada para as 10h, outros não foram avisados oficialmente mesmo, tomando ciência, pela manhã, por outros conselheiros indignados com a situação.

Revoltados, parte do grupo excluído decidiu ir à Aleam para argumentar que não havia lisura nesse procedimento, e que isso poderia ocasionar prejuízos para o Conselho do ponto de vista legal. E é aí que entro na história, convidada pelo grupo para buscar esse diálogo com a então secretária da pasta. Diálogo que foi refutado pela gestora. E não posso deixar de descrever como essa recusa se deu: Ao me apresentar como representante da Comissão da OAB, ela me olhou dos pés à cabeça, com profundo desprezo, e disse que não tinha nada para falar comigo, que se eu quisesse, que esperasse o jurídico da Sejusc. Apesar de a postura dessa senhora ter claramente um nome, esperei pelos colegas da secretaria que, ao chegar, pediram que eu me dirigisse com eles e os conselheiros excluídos da posse para uma sala reservada. O que eu e os demais não imaginávamos era que essa conversa reservada era, na verdade, uma estratégia para que a cerimônia de posse programada pela sinhá-secretária começasse. Se não tivéssemos sido avisados por alguém indignado com tudo que estava ocorrendo, não teríamos ideia de que a cerimônia da posse já estava ocorrendo no auditório.

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Dirigimo-nos até lá e os conselheiros eleitos pediram a fala, o que lhes foi negado. Diante de mais uma violência, eles se dirigiram ao centro do auditório para informar a exclusão ocorrida, o que levou servidores da Sejusc a acionarem os policiais que faziam “a segurança” do evento. Os policiais só não agiram porque me dirigi até eles, me apresentei como advogada e disse que não aceitaria qualquer outro ato de violência. Os policiais recuaram, mas a violência física acabou partindo de “fogo-amigo”, um conhecedor da arte da capoeira que partiu para a agressão contra um idoso e acabou atingindo minha mãe, uma mulher de estrutura física frágil e de quase 80 anos, que pedia calma e diálogo.

E o termo fogo-amigo merece destaque nesse episódio, porque não foi só essa agressão, mas a existência de toda uma articulação que ficou bem evidente no decorrer daquela manhã. Integrantes dos Movimentos Negros, entre conselheiros eleitos e outros que apareceram por lá, tinham pressa na Posse do Cepir, porque era preciso eleger a representante do Movimento Pardo Mestiço para que a mesma pudesse tomar posse, em Brasília, no Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), com assento criado pouco tempo antes por influência da então ministra “da Mulher e da Família”. Fiz questão de usar Movimentos Negros, assim no plural, para pontuar essa pluralidade de pensamentos e posturas. E, nesse caso que narro, vemos negros agindo em parceria com um grupo que, publicamente, diz que rejeita qualquer ascendência africana e ataca os conceitos que envolvem a negritude e as conquistas sociais da população negra. Só para citar uma fala, no mínimo bizarra, essa mesma senhora que tomou posse no CNPIR com a ajuda de parte do movimento negro amazonense, durante audiência pública promovida pelo senador Paulo Paim para debater a Lei de Cotas, utiliza de uma narrativa deturpada da história da escravidão no País e do teor dos Tratados de Direitos Humanos assinados pelo Brasil para dizer que os Movimentos Negros Brasileiros são racistas (sem falar que faz uma salada com os conceitos utilizados pelo IBGE).

E, na eleição ocorrida na última segunda-feira, o mesmo grupo Pardo Mestiço tentou tumultuar o processo de eleição do Cepir. Inconformados por terem indeferida a inscrição para participar da disputa, pois a comissão eleitoral verificou que o grupo e a Associação dos Caboclos e Ribeirinhos da Amazônia possuíam os mesmos membros, o que gerava um conflito de interesses, eles estiveram na porta da Sejusc, com a imprensa, alegando que tinham sido vítimas de racismo por parte da comissão, argumento que já havia sido descartado, inclusive, pelo Ministério Público Estadual.

Prometo fazer um outro texto explicando os prejuízos causados pela política de branqueamento ocorrida no Brasil, que depois é reforçada pelo mito da democracia racial. Dentre esses reflexos está a dificuldade de identificação do brasileiro com suas origens africanas e indígenas. E essa política de Estado, que nasce com o estupro de mulheres indígenas e negras, vai criar figuras como os capitães do mato, que não deixaram de existir com o fim da escravidão. Essa e outras chagas do sistema escravocrata, infelizmente, permanecem entre nós.

Espero, sinceramente, que com a nova eleição, o Cepir ganhe novos ares. Inclusive, uma sugestão aos novos conselheiros é que revejam o Estatuto criado pela antiga composição, pois é vergonhoso ver artigos e incisos colocados ali como retaliação aos que não se curvaram e que não beijaram a mão daqueles que nunca quiseram, de fato, igualdade no Cepir.

(*) Luciana Santos é jornalista e advogada, mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Público, Direitos Humanos e Processo Civil, Africanidades e Cultura Afro-brasileira e possui MBA em Marketing e MBA em Gestão empresarial.
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.
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