Crônicas do Cotidiano: Um pouquinho mais de Hannah Arendt não faz mal a ninguém

O título inicial seria “Da mentira na política à canalhice generalizada”, mas, por razões de pudor, optei pelo título acima por várias razões: dos autores que conheço, Arendt me pareceu atemporal; é autora de uma obra que analisa uma das maiores mentiras da contemporaneidade, que resultou na grave crise política da democracia nos Estados Unido da América, com a divulgação dos “Documentos do Pentágono”, publicados pelo The New York Times, em junho de 1971 (que revelavam o processo decisório do Governo na Guerra do Vietnã, baseado em mentiras); a obra põe a nu as contingências da política norte-americana, aplicável a todos que orbitam o poder e na política estão engalfinhados; mostra, ainda, o conflito entre a legalidade e a legitimidade que se expressa na desobediência civil, tendo como consequência a violência sob o patrocínio do Estado contra o povo; e, por último, a sua definição de mentira na política, cai como uma luva sobre o que estamos a ver.

Portanto, nas poucas linhas que tenho, não deixo de expressar à autora de Crises da República (São Paulo: Planeta Brasil, 2024) meus agradecimentos. Tirou-me do enrosco de ter que explicar a canalhice em que se tornou a política no Brasil, macaqueando o que tem de pior no mundo, fundamentada na “mentira política”: “mentiras são frequentemente mais plausíveis, têm mais apelo à razão do que a realidade, uma vez que o mentiroso tem a grande vantagem de saber de antemão o que o público deseja ou espera ouvir.

Ele prepara sua história para o consumo do público com o cuidado de fazê-la verossímil, ao passo que a realidade tem o desconcertante hábito de nos confrontar com o inesperado, para o qual não estamos preparados” (Op. cit. p.10). Para isso, corroboram as constantes Pesquisas de Opinião. Como a política só se realiza no plano da ação, a mentira distorce os fatos para glorificar a opinião, tomada como a “sua verdade”!

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Político mentiroso seria superlativo, mas não é. A política é necessária, o político mentiroso é exceção, embora a mentira possa ter morada nas “promessas de campanha”. A mentira torna-se perigosa quando é deliberada e torna-se fundamento da ação política expressa nos procedimentos do Estado através dos seus aparelhos de poder, das suas instituições, ou melhor, dos Poderes da República e, no privado, através do aparato de difusão, mais conhecido como a mídia, em todo o seu conjunto.

Os acontecimentos estão aí para provar: assistimos no Parlamento um show de insensatez que o transforma em submundo, com práticas que atentam contra si mesmo e a Democracia; constatamos o descompromisso parlamentar com o ideal de Estado e de Nação, contidos no programa dos partidos políticos, mas pensados desde o fim da Ditadura e consagrados na Constituição, emendada e remendada, nem sempre para melhor.

Alterar a Constituição, mesmo que seja para ajustá-la à conjuntura, sem discussão, é ilegítimo e nos leva ao precipício, sobretudo se os fundamentos da reforma se baseiam em argumentos mentirosos ou em revanchismo.

No Judiciário, o jogo de forças internas e externas tem provocado o enfraquecimento do STF, que deve dizer a última palavra sobre o que é ou não constitucional. Não bastasse isso, vêm à tona fatos julgados que geraram cisões políticas e agora revelam “uma verdade diferente”, mentiras a serem apuradas. No Executivo, manietado pelas forças particularistas do Congresso, sobra a cizânia, o bate cabeça das vaidades palacianas, fazendo o gosto dos que financiam a publicidade veiculada nos Meios de Comunicação e fazem as monetizações da nova mídia da Internet.

Estas retribuem dando ouvidos aos ogros fantasiados de comentaristas: aqueles que, no particular, administram os fundos e os interesses das grandes famílias, porém, para o público, posam como comentaristas formadores de opinião. Os mesmos de sempre, a serviço dos poderosos.

Por isso, o ovo da violência está eclodindo na forma de balas perdidas nas operações desastradas das polícias que matam e na constatação de que, pelo menos, nas concorrências públicas não se distingue mais a tal “elite empresarial” das “facções criminosas”, tal como nos tempos da Colônia, quando o mais rico traficante de escravos doa o seu palácio recém-construído à família real, que aportava ao Brasil fugindo de Napoleão, e vira nobre. Parece tudo junto e misturado! É a Realpolitik no país que não queríamos ver assim!

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(*)Jornalista Profissional, graduado pela Universidade do Amazonas; Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo; Professor Emérito da Universidade Federal do Amazonas.

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