Mal traçadas linhas da história de Manaus

Gravuras rupestres que apareceram em Manaus após seca histórica (Valter Calheiros/Reprodução)
Ademir Ramos – Especial para a Revista Cenarium Amazônia**

MANAUS (AM) – Os colonizadores e seus escribas comportam-se de forma diluviana. Tudo começa com eles avançando nas terras dos povos originários da Amazônia, com predomínio de seu poderio bélico e patológico, demarcando o tempo e espaço conforme seus interesses e domínios, como se fossem o marco civilizatório da história de Manaus contra os “selvagens” que eles passaram a tratar como bárbaros.

Esta gente é tão bárbara que não basta dominar e conquistar, é necessário pisotear sobre os mortos, edificando em seus lugares sagrados monumentos de exaltação a sua fé e glória para recontar a história a partir de seus feitos, renomeando a toponímia, fauna, flora e a própria cultura dos povos que habitavam e habitam o País das Amazonas, na compreensão do barão de Santa-Ann Nery.

Nesse contexto, “não há documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie”, ensina-nos Walter Benjamin, nas Teses sobre filosofia da história.

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Gravuras rupestres de mais de mil anos apareceram devido à estiagem (Reprodução/Valter Calheiros)

Dessa feita, civilizar é cristianizar; é proibir a comunicação na língua materna, obrigando os dominados a falar a língua do colonizador com determinação e ordem do principado da Coroa Portuguesa, como consta no “Diretório Pombalino”, em atenção às povoações dos indígenas do Pará e Maranhão, datado de 7 de junho de 1755, com aval do Marquês de Pombal – Sebastião Joseph de Carvalho Mello – secretário do reinado de D. José I (1750-1777), que assim ordenava: “Sempre foi máxima inalteralvente praticada em todas as nações, que conquistarão novos domínios, introduzir logo nos póvos conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável, que este he hum dos meios mais eficazes para desterrar dos póvos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes” (Item 6).

No Rio Negro, a história é bem diferente da celebrada e comemorada pelos piratas dos povos indígenas. A resistência contra os colonizadores portugueses foi literalmente sangrenta, como descreve o historiador Francisco Jorge dos Santos em sua obra – Além da Conquista: guerras e rebeliões indígenas na Amazônia Pombalina: “(…) a melhor representação da resistência e demonstração de serem os indígenas agentes de sua própria história foi as situações criadas pelos indígenas da nação Manau, na região do baixo e médio Rio Negro, resultando na famosa guerra entre os indígenas e portugueses na década de 1720” (Santos, 2002: p. 28).

Os Manau (Manáo, Manaus) era uma das nações indígenas de grande densidade demográfica lideradas por Ajuricaba e habitavam às margens do Rio Negro, da Foz do Rio Branco até a ilha de Timoni. No momento da invasão colonial, segundo Bessa Freire, pareciam estar em pleno processo de expansão territorial em direção ao Oeste, espalhando-se pela região do Rio Japurá, (Santos: op. cit., p. 28).

A resistência dos Manau do Rio Negro contra as ordens do Diretório Pombalino transformou-se em rebelião, alastrando-se por todo Vale, barrando a política de portugalização e cristianização desses indígenas, sendo retomada pelos padres salesianos nas primeiras décadas do século 20.

Os fatos denunciam as mal traçadas linhas da história de Manaus, contrariando os escribas palacianos que se identificam muito mais com a cultura e os interesses dos conquistadores do que com o modo de ser, pensar e fazer das culturas dos manauaras, que eles teimam chamar de manauenses, em cumprimento à ordem do Diretório Pombalino em alusão aos tempos provinciais.

O guerreiro Ajuricaba (Reprodução/Internet)

A configuração social desse cenário de guerra colonial e neocolonial contra os povos originários na Amazônia pode ser também compreendida à luz dos ensinamentos do fundador da psicanálise, Sigmund Freud, quando envereda pelo campo da psicologia social a partir da guerra de 1914.

O mestre da psicanálise é autor de dois ensaios publicados na coletânea Os Pensadores da Abril Cultural (1978), que julgamos ser oportunos para analisar a pauta em questão. O primeiro é O Futuro de uma Ilusão (1927) e o segundo O Mal-Estar na Civilização (1930), estudo esse que retoma a temática anterior na perspectiva de reafirmar que é impossível fugir à impressão de que as pessoas comumente empregam falsos padrões de avaliação – isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que, verdadeiramente, tem valor na vida.

No entanto, ao formular qualquer juízo geral desse tipo, Freud assegura que: “corremos o risco de esquecer quão variados são o mundo humano e sua vida mental. Existem certos homens que não contam com a admiração de seus contemporâneos, embora a grandeza deles repouse em atributos e realizações completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da multidão” (Freud: 1978, p. 131).

Por fim, destaca-se o conceito de civilização trabalhado por Freud para dirimir qualquer dúvida quanto ao mandonismo colonial dos conquistadores. “A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição animal (bestial) e difere da vida dos animais – e desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização – (Freud: 1978, op. cit., p. 87). Feito este esclarecimento conceitual, o criador da psicanálise nega qualquer hierarquia de domínio de uma cultura sobre a outra em nome de uma determinada civilização com feições da globalização.

Guerra dos Manaus e colonizadores (Ilustração/Conhecimento Científico)

O certo é que estes homens não podem tudo porque a história é muito maior do que seus feitos e suas ganâncias; quando tensionada transforma-se em força social ganhando corpo e forma, removendo as estruturas de poder.

Por sua vez, a história e as ciências afins como arqueologia também são marcadas por amplos debates e até mesmo controvérsias, principalmente, se tratando da questão do povoamento do Novo Mundo. Contudo, para Betty Meggers, autora de – América Pré-histórica – temos evidências zoológicas e paleontológicas que eliminam decisivamente as Américas como possível nicho, tanto para a evolução humana quanto para os primeiros estágios de desenvolvimento cultural.

Para a pesquisadora que fez da Amazônia também seu campo de trabalho, em estudo demandado pela Unesco, afirma que “existem provas de que o homem teria penetrado no hemisfério por volta de 9.000 a.C. As discordâncias surgem das informações esporádicas inconclusivas, da presença do homem no Novo Mundo, entre 40.000 e 12.000 anos passados, datação que algumas autoridades aceitam e outras não”. Fala-nos também que: “O consenso tem sido gradualmente modificado nos últimos anos e as datas mais antigas tendem a ser consideradas com ambivalência, embora não de todo rejeitadas” (Meggers: 1970, p. 23).

Do povoamento do Novo Mundo à Amazônia Pré-Colombiana reportamo-nos aos estudos de “Preservação em Debate: Aspectos da Arqueologia na Cidade de Manaus”, de autoria de Helena P. Lima e Bruno Moraes, referenciado pelo Museu Amazônico da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

Manaus, em particular, para os pesquisadores referenciados: “Tem uma longa história de ocupação humana, que remonta a milhares de anos (…). O alto potencial arqueológico da região é comprovado pelas dezenas de sítios ali presentes, principalmente, na zona rural do município (Hilbert, 1968; Simões, 1974; Costa e Lima, 2006). Em contexto plenamente urbano são conhecidos vinte e quatro sítios, em diferentes graus de preservação”.

Um desses sítios arqueológicos é o Ponta das Lajes, no portal do Encontro das Águas do Rio Negro e Solimões, na Zona Leste de Manaus, que vem sendo documentado pelo pesquisador e fotógrafo Valter Calheiros, do Movimento S.O.S. Encontro das Águas, desde 2010 e, agora, com a grande seca de 2023 os petroglifos, com gravuras rupestres com temáticas antropomórficas e zoomórficas afloraram ainda mais, dando visibilidade à história de ocupação da Amazônia estimada pelos especialistas entre 2.000 a 7.000 anos.

Sítio Ponta das Lajes (Reprodução/Valter Calheiros)

Nós, como “macunaímas redivivos” precisamos tod@s os dias desrespeitar os teus “mestres” oh desvairada Manaus, canta o Poeta Anibal Beça. Tudo isso para fazer valer a tua História que é a nossa herança cultural milenar como linguagem e representação impressa nas pedras, nas artes e no vasto universo de nossas culturas enquanto plataforma de identidade desta brava gente manauara.

Leia mais: No AM, São Gabriel da Cachoeira oferece etnoturismo com cultura e história de indígenas
(*) É professor, antropólogo e coordenador do Projeto Jaraqui e do NCPAM do Departamento de Ciências Sociais da Ufam. E-mail: [email protected]
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.
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